As peças que faltam nas Smart Cities e na Indústria 4.0

_DSC0005-0

Ontem à noite, o antropólogo e etnógrafo Massimo Canevacci esteve na Unisinos, em São Leopoldo, para falar sobre “Smart cities, cultura digital e renovação política. Contradições e possibilidades da revolução 4.0”. Mas quem estava esperando mais uma palestra mostrando os benefícios de se espalhar sensores pela cidade para gerenciá-la de forma mais eficiente, com inteligência artificial e visualização de dados, certamente se surpreendeu. Questões menos óbvias, mas claramente fundamentais, foram propostas por Canevacci para enriquecer o conceito de Smart Cities buscando evitar que a gente cometa os mesmos erros que projetistas e pensadores do passado recente.

Canevacci começou traçando uma linha histórica e artística do conceito de ubiquidade, essa ideia de se estar ao mesmo tempo em todos os lugares em nenhum, essa desterritorialização da nossa identidade que é muito forte na cultura digital mas que, segundo ele, já começou na era do rádio. Italiano, Canevacci citou o exemplo do rádio durante o facismo e o nazismo, que era considerada “a voz do Fuhrer” em toda a Alemanha ou do Duce na Itália, uma presença espectral que estava simultaneamente em todos os lugares em nenhum – como todo o poder simbólico e concreto que isso tem. A partir daí, lembrou os estudos de Adorno sobre a ubiquidade do rádio e citou David Lynch, David Cronenberg, Black Mirror, Nam June Paik e Tran Ba Vang como exemplos de artistas e obras que compreenderam a identidade ubíqua das pessoas antes mesmo da academia estudá-la em toda sua riqueza.

Mas o que a identidade ubíqua tem a ver com as Smart Cities e a Indústria 4.0? Assim como a cibernética foi constituída como campo tendo à mão ideias das teorias sociais, Canevacci propõe que é preciso entender muito bem essa fragmentação da identidade das pessoas (e dos objetos, que também passam a estar em todos os lugares e em nenhum com a Internet das Coisas) para não acabarmos gerando mais problemas do que soluções com toda a estrutura tecnológica que está sendo pensada e projetada para a integração de cidades e objetos com as redes. Para ele, o conceito e os projetos de Smart Cities ainda são muito debatido na base do “sensores + dados + inteligência artificial = soluções para todos nossos problemas” (o que Evgene Morozov chama acidamente de “solucionismo”) e sugere que é importante & urgente olharmos para isso pensando melhor o lugar das pessoas e de suas questões subjetivas nessa rede. Isso, sob pena de repetirmos o erro de querer resolver complexos desafios humanos apenas com a tecnologia. A audiência de Mark Zuckerberg com o Senado americano, que aconteceu algumas horas antes da fala de Canevacci, é um exemplo vivo do que pode acontecer quando a tecnologia é projetada sem um viés cultural, ético, social e humano.

Canevacci também ressaltou que é preciso revisar e renovar certos conceitos teóricos para dar conta dos desafios contemporâneos no âmbito das Smart Cities e da Revolução 4.0. Sua própria pesquisa está buscando expandir conceitos do marxismo (do fetiche da mercadoria ao metafetichismo) e da teoría crítica (da personalidade autoritária para a personalidade digital autoritária) para ajudar a construir alternativas viáveis de modos de pensar e de viver que os projetos revolucionário-tecnicista (por obsessão com o futuro tecnológico) e revolucionário-humanista (por obsessão com fórmulas do passado) não estão conseguindo. Ele perguntou literalmente: “qual é a proposta da esquerda para a Indústria 4.0? Qual é a proposta da FIESP para a Indústria 4.0?” E aproveitou para conclamar os interessados a “ensinar a esquerda a pensar essas questões e a se comunicar” e a reformular a universidade rumo a uma proposta mais transdisciplinar e menos refém de suas caixinhas clássicas.

Pois, ao vivo, em pouco menos de 2 horas, Canevacci mostrou qual é a vantagem de sermos transdisciplinares e não estarmos fechados em nenhuma caixinha.

***

Em um momento muito perspicaz e bonito, Canevacci lembrou que foi a ubiquidade de Marielle Franco que tornou ela uma ameaça ao establishment político: Marielle não pertencia a um lugar só; estava na favela e fora dela, em todos os lugares e em nenhum. Se estivesse só dentro ou só fora, disse o professor, ela não seria um “problema” e não teria sido assassinada. Tragicamente, a morte de Marielle a tornou ainda mais ubíqua – ou assim esperamos.

***

A palestra de Canevacci ontem faz parte de um ciclo sobre Revolução 4.0 do Instituto Humanitas.

No site do Instituto Humanitas tem diversas entrevistas com ele.

***

Foto: Rivista di Scienze Social

Sobre o fim do OEsquema

OEsquema_2008-2015

O Sutra do Diamante, um dos mais importantes discursos do Buda, diz, a certa altura:

“Todos os fenômenos
São como um sonho, uma ilusão,
uma bolha, uma sombra
como o orvalho ou um raio
Assim devemos percebê-los”

O OEsquema foi um dos sonhos, uma das ilusões, uma das bolhas, uma das sombras, uma das gotas de orvalho, um dos raios mais bacanas dos quais participei na minha vida. Quando o Matias (Trabalho Sujo) e o Bruno (Urbe) me convidaram, em 2008, para dividirmos o servidor e um layout junto com o Arnaldo (Mau Humor), aceitei na hora. Depois de 3 anos de um Conector solitário no Blogger, foi uma alegria encontrar parceiros com quem podia não apenas ratear despesas mas também conectar ideias. Mesmo que em paralelo, sem uma proposta formal, sem uma linha editorial, sem reuniões de pauta, pouco a pouco fomos influenciando e complementando uns aos outros de maneira natural e crescente.

Com o Matias, eu já vinha interagindo desde os anos 90: estivemos juntos na Poplist (uma frutífera lista de emails de músicos, produtores e jornalistas de cultura pop), minha banda foi resenhada por ele no Trabalho Sujo de papel (uma coluna cultural no Diário do Povo de Campinas), publiquei textos no site dele, o 1999 (um site que durou um ano) e também na revista de cultura digital que ele editou (a Play, da editora Conrad). O Bruno eu já lia no Urbe, mas fui conhecer pessoalmente só depois do OEsquema já estar funcionando, numa passagem relâmpago por Londres onde ele me arrumou um sanduíche e um ingresso pra ver o Radiohead no Victoria Park. O Arnaldo, de quem também já era leitor e fã, fui conhecer anos depois, no lançamento de um microdocumentário sobre coletivos do qual o OE participava – quer coisa mais “era digital” do que conhecer seu sócio desse jeito?

Em 2010, vieram os outros blogueiros e nasceu nossa capa com uma característica básica: todo o conteúdo do http://www.oesquema.com.br sempre foi decidido pelos blogueiros integrantes. Nunca houve filtro, editor e nem editoria. O OEsquema, desde sempre, manteve coletivamente o espírito de fluxo de consciência da origem dos blogs. Nossa capa era um apanhado orgânico do que vinha rolando na cultura pop do jeito como a cultura pop está sendo feita – sem rótulos, sem retrancas, sem categorias estanques. O OEsquema era um blog de blogs.

Em 2013, o pico de audiência com a cobertura coletiva das Jornadas de Junho. Em 2014, a tentativa de profissionalizar o site, que acabou não dando certo porque nenhum de nós, dos sócios, poderia puxar o carro da profissionalização e, que se saiba, fluxo de consciência não é bom gestor de negócios. Decidimos pelo fim e voltamos cada um para seu endereço, com as malas cheias de experiências incríveis e amizades valiosas.

O fluxo continua. Eu vou estar por aqui no Conector. Os endereços dos outros quase 30 blogs do OEsquema vão estar em breve no http://www.oesquema.com.br.

Até mais.

30 Ferramentas para Inovação Social

HelloDIY Apaixonados por esquemas e metodologias, chorai no cantinho. O Nesta, uma ONG britânica focada em incentivo à inovação (com forte atuação na área da economia criativa) lançou no início do ano um compêndio de 30 ferramentas para facilitar processos de inovação em ações sociais,  o Development Impact & You. Em bom português, Impacto de Desenvolvimento & Você. Apesar de ter participado de um evento do Nesta e já ter explorado o site deles, eu ainda não tinha travado contato com essa verdadeira maravilha. O DIY Toolkit mistura ferramentas bastante conhecidas (como a Matriz SWOT, o Business Model Canvas e o Thinking Hats) com outras menos usuais, todas elas já existentes e selecionadas, segundo os organizadores, a partir do estudo de centenas de alternativas testadas na prática. Cada uma delas está devidamente classificada de acordo com seu objetivo, tem seu uso explicado didaticamente em vídeo e, por serem ferramentas visuais, acompanhadas de pranchas em PDF para baixar, imprimir e usar na hora. Tudo gratuitamente. nestatoolkit Há ferramentas para desenvolver planos, para gerar ideias, para organizar informações, para captar informação, para conduzir entrevistas de pesquisa, para testar hipóteses e por aí vai. Além do mais, há uma sessão de background teórico pra quem quiser se aprofundar, e um blog com textos complementares e estudos de caso. Em resumo, são subsídios para incentivar não apenas ações sociais inovadoras, mas também ações sociais estratégicas, ou seja, precedidas por uma reflexão ampla que dê suporte a soluções novas, eficientes e de efeito mais profundo. Você pode visualizar, ler, aprender e baixar o Development Impact & You Kit no próprio site do projeto. A única nota triste disso tudo é que o DIY ainda não está disponível em português. Mas uma vez que o Nesta já esteve presente no Brasil com o treinamento para empreendedores criativos via British Council (e eu estive lá), quem sabe em breve não sai uma versão nacional do kit.

*** Leia também: Jam: uma ferramenta de processo criativo simples e visual.

O Círculo: talvez o livro mais importante de 2014

The-Cirlce

O ano já se encaminha para o final, mas ainda dá tempo: O Círculo, romance de Dave Eggers que narra a ascensão de uma funcionária exemplar na empresa de tecnologia mais criativa do mundo, pode ser lido sem pressa em poucos dias, digamos, entre o Natal e o Ano Novo. Não que sua atualidade tenha data de validade tão curta ( o livro é de 2013!), mas defendo que este livro, mesmo com seus pequenos defeitos literários, talvez seja um importante marco na cultura contemporânea. O que Eggers fez não é pouco – ele escreveu a fábula definitiva que encerra um período de ingenuidade sobre o que o universo simbólico do Vale do Silício tem a oferecer para o mundo. Quanto antes passarmos isso a limpo, melhor.

A história de Mae Holland, personagem principal do romance, é facilmente reconhecível mesmo por quem não acompanha o noticiário especializado de tecnologia. Recém formada e enfiada em uma repartição pública do interior da Califórnia, Mae é resgatada de sua vidinha ordinária por uma ex-colega de faculdade que lhe devia alguma fidelidade. A dívida é paga com juros. Annie, a amiga socialmente bem posicionada de Mae, faz parte da elite do Círculo, o Google do universo criado por Eggers, que revolucionou a vida online unificando todos os perfis e identidades virtuais no TruYou, “uma conta, uma identidade, uma senha, um sistema de pagamento por pessoa” no qual se usa “seu nome verdadeiro, que está vinculado a seus cartões de crédito, seu banco”, ou seja, “um botão para o resto da sua vida online”. A sede do Círculo, situado em uma cidade fictícia próxima a San Francisco, é tudo aquilo que Mae – e boa parte dos jovens hoje – quer de um ambiente de trabalho: uma Shangri-la moderna, com calçadas pavimentadas com pedras contendo mensagens inspiradoras, comida orgânica gratuita, shows e espetáculos diários com grandes artistas no refeitório, festas temáticas semanais, um hotel interno para quem não quer dirigir de volta pra casa depois do serão, medicina preventiva baseada em sensores intracorporais e big data, além de uma demografia clara no recrutamento (só jovens bacanas e interessantes entram para O Círculo). É nessa empresa, que Eggers parece ter construído a partir de uma pesquisa sobre “onde as pessoas de 2014 gostariam de trabalhar”, que Annie arruma uma vaga para sua ex-colega da graduação.

02616_gg
[o autor]

Mae começa por baixo, na área de atendimento ao cliente, e primeiro estranha a intensidade social dos funcionários do Círculo, que vivem o campus como se fosse o único lugar do mundo onde vale a pena estar. Mas, rapidamente, ela não só é seduzida pela vida no Círculo como engata uma trajetória de protagonismo pagando alguns preços que Eggers – mas não Mae – considera caros. Sua privacidade, sua relação com os pais, com a amiga Annie e com qualquer coisa que não seja a filosofa essencial dos Três Sábios, o board que preside O Círculo, tudo vai sendo deixado para trás em nome de um avanço radical em busca da transparência digital definitiva. O livro se desenrola na sua dupla função, de sátira e thriller. A meio caminho do final, um forte suspense tempera a divertidíssima crônica de costumes que cobre praticamente todos os exageros que viemos cometendo nos últimos 15 anos no uso indiscriminado e experimental do que quer que a indústria da tecnologia sacuda na nossa cara. Os ruídos de comunicação gerados pelo contato virtual, a carência emocional convertida dados de audiência pessoal, a autoexposição que busca soterrar angústias profundas, o reality show que pulou da TV pras nossas timelines – O Círculo de Eggers parece mais um catálogo das pequenas insanidades cotidianas da hipermodernidade.

Apesar de algumas forçadas de barra narrativas (bem sublinhadas por essa resenha do NYT) e da tradução para o português que não tem como dar conta da mania dos personagens de falarem discursando como se estivessem no TED Talks (algo que flui melhor em inglês), O Círculo tem o gigantesco mérito de expandir para uma audiência mais mainstream linhas de discussão que até então viviam restritas aos textos de especialistas como Jaron Lanier, Evgene Morozov e Douglas Rushkoff. O poder de influência das empresas de tecnologia sobre a sociedade via ferramentas e códigos culturais, sua tendência monopolista disfarçada de simpatia é quase amor, sua relação ambígua com Governos e políticas públicas, seu impulso de pedir transparência aos usuários enquanto trabalham sob uma redoma frequentemente opaca, nada disso interessa ao público médio na forma de ensaios político-culturais. Nesse sentido, O Círculo funciona como um cavalo de tróia – você está lá, se divertindo com as patuscadas de Mae Holland na prosa quase televisiva de Eggers e, quando percebe, sua mente foi inoculada com uma série de questionamentos absolutamente sérios e relevantes sobre onde fica o limite entre a disrupção tecnológica útil e a demência capitalista-digital que mascara emoções destrutivas com design minimalista e responsivo.

the-circle

Antes de escrever esse post, me perguntei se ele seria relevante no contexto brasileiro, uma vez que a história de O Círculo depende em parte de conhecermos um pouco do funcionamento do Vale do Silício. Mas então lembrei que há pouco tivemos uma novela das sete com a mesma temática; que revistas mainstream como Época Negócios, Exame PME e Veja tem destilado essa filosofia em suas páginas há anos; que a morte de Steve Jobs comoveu Luciana Gimenez; e que mesmo aqui, em Porto Alegre, empresários de todos os portes e idades parecem querer emular o jeito de fazer negócios (e de se exibir) de San Francisco. Onde houver uma empresa que pensou em colocar (ou colocou) um videogame na área do cafezinho pra se sentir mais moderna, a leitura de O Círculo se faz necessária.

Conforme escrevi nos posts Softer, Worser, Slower, Weaker e A Perigosa Cultura do Como Mudar o Mundo e Sua Vida, estamos passando por um momento de deslumbramento com práticas empresariais supostamente modernas mas que, muitas vezes, tem por trás as mesmas intenções e valores de sempre – crescer e conquistar território. O fato de que essas intenções hoje são mais facilmente disfarçadas com propósitos “sociais” e slogans “inspiradores” é algo que deveria nos incentivar a ter sempre um pé atrás e uma sobrancelha levantada com empreendedores hiperbólicos. Só assim descobrimos, por exemplo, que a narrativa da startup que nasce em uma garagem no Vale do Silício é, em geral, mais mito do que de verdade. E que muitos empresários da era digital podem ser considerados, como escreveu Fernand Alphen, “robber Barons modernos”, alcunha historicamente reservada a latifundiários inescrupulosos na Europa medieval ou a industriais vorazes nos Estados Unidos do século XIX. Só assim mantemos uma atitude saudável de nos perguntarmos, como fez a Bia Granja, se não devemos deixar de usar um app super popular e útil (e com uma aura suuuper moderna) devido aos valores questionáveis de seus criadores.

O Círculo é o livro que faltava pra condensar todas essas suspeitas em uma obra de apelop pop e que você pode levar embaixo do braço lembrando que uma empresa mercantilista e messiânica não deixa de ser mercantilista e messiânica só porque sua sede parece um café do Brooklyn e seu discurso corporativo soa como um vídeo de autoajuda. Tudo bem se você quer conquistar o mundo com suas ideias, seu dinheiro e sua energia. Mas, como bem resume um ditado popular, não vem me contar que eu não sou dinheiro.

***

coup1

Outra coisa: de certa forma, achei que O Círculo é a versão século XXI de Microservos, romance de 1995 escrito por Douglas Coupland (o mesmo de Geração X). Microservos conta a história de um grupo de nerds hardcore com imensos talentos (e dificuldades de relacionamento do mesmo tamanho) que deixam a Microsoft para embarcar em um projeto semi-autoral. É bem mais emocional e poético do que O Círculo (ao estilo de Coupland), mas vale comparar os dois pra sentir o papel da tecnologia e seus personagens no meio da década de 90 (ainda marginais e desajeitados) e quase 20 anos depois (no centrão da cultura pop).

Microservos saiu no Brasil na época pela Nova Fronteira com uma capa idêntica à versão original (aí de cima) e é super difícil de achar, mesmo em sebos. Eu ainda tenho o meu. 🙂

Imagens: Be Nourished e Busty Teacher.

Jam: uma ferramenta de processo criativo simples e visual

JAMBOARD

Quem não é da área criativa em comunicação, geralmente acha que a parte mais complicada desse trabalho é “ter ideias”. Já quem é do ramo sabe: hoje em dia, com tanta informação e tantas ferramentas à mão, qualquer um tem ideias. O que não falta é gente chegando em reunião com ideias! O problema real é gerar ideias que resolvam mesmo os briefings e de maneira sistemática, o que é o oposto de ter espasmos de criatividade atirando para qualquer lado, coisa que qualquer um pode fazer de vez em quando.

Foi pra resolver isso que eu e o Zé Pedro Paz da DZ Estúdio criamos a JAM – Processo Criativo Smart/Simple. A JAM é uma ferramenta simples e visual desenvolvida para sistematizar a criação de ações e campanhas da DZ. Na DZ, assim como em muitas agências digitais, criação é processo e não necessariamente um departamento. Logo, envolve pessoas de áreas diferentes que nem sempre tem as manhas do processo criativo. Daí, a necessidade de utilizarmos um método de fácil compreensão e aplicação que organize as informações de entrada, facilite o brainstorm e depois consolide o resultado do brain.

A JAM vem sendo usada há mais de um ano na DZ e ajudou a desenvolver uma série de projetos bacanas. Agora, resolvemos abrir a JAM e liberá-la para o uso de quem quiser na esperança de receber críticas e sugestões, e também para ajudar outras empresas e pessoas que estejam, como estivemos, com obstáculos em processos criativos que envolvem profissionais de backgrounds muito diferentes.

Interessou? A JAM está explicadinha aqui nessa página, inclusive com os boards visuais que usamos nas nossas jams. Use e escreva pra nós pra fazer suas considerações. Queremos daqui um tempo ter uma JAM 2.0 ainda melhor e mais útil.

***

Atenção: na próxima quarta, dia 19 de novembro, eu e o Zé vamos dar um workshop sobre como usar a JAM na Semana da Comunicação da ARP. Mais informações aqui.

Por que o Facebook é a internet das eleições 2014

 

10622918_904295672931531_3754106560924288733_n

E quem diria: a rede social que passou boa parte do ano tendo sua decadência prevista por pesquisas e especialistas se tornou a grande estrela digital das eleições de 2014, mesmo antes do segundo turno terminar. Com cerca de 90 milhões de usuários ativos, dos quais 59 milhões acessando-o diariamente (dados de agosto), o Facebook vem combinando grandes números de audiência na internet com a aderência de todas as correntes políticas e classes sociais, além de permitir a discussão política em diferentes níveis de profundidade. Muita gente ama, muita gente o odeia o Facebook, mas todo mundo declara seu amor e ódio eleitoral postando no próprio.

Em 2010,  nas últimas eleições presidenciais, éramos menos de 9 milhões de brasileiros no Facebook e 9 milhões no Twitter. O Orkut era o terceiro site mais acessado do país e contava com 30 milhões de usuários, mas seu formato mais tosquinho e a população menos conectada e menos móvel impediam um fluxo tão orgânico e pulsante de conteúdos como temos hoje. Além do mais, os Protestos de Junho de 2013 ainda não tinham acontecido e política não era uma pauta tão quente como é agora (embora eu tenha a impressão que no Facebook TODAS as pautas tem pegado fogo). Na verdade, vivemos em um país tão diferente de 2010 em termos de cultura digital que é quase impossível fazer comparações.

Por um lado, o Facebook foi beneficiado pelo contexto de 2014: nos últimos dois anos, pudemos começar a usar a palavra “popular” para falar de smartphones, internet móvel e vídeo na internet. Nos últimos 15 meses, tivemos dois grandes eventos nos quais testamos intensamente nossas redes pessoais no que diz respeito a discussões nacionais – os já citados Protestos de Junho e, ligado a isso, a Copa do Mundo. Mas também há os predicados do próprio Facebook, sendo que o mais importante de todos é que ele combina os principais formatos de postagens e compartilhamentos em uma única plataforma: se você quer condensar sua opinião política em 140 caracteres, você pode; se você quer se estender, escrevendo um post de 2.000 caracteres manda; se você se contenta em compartilhar um card com um meme, tá valendo; vídeos oficiais do seu candidato são aceitos; vídeos não oficiais também são válidos;  selfie na urna? Tudo bem! O Facebook não tem preconceitos e aceita todo mundo que queira se expressar do jeito que bem entender – desde, claro, que esteja demograficamente dentro da população mininamente conectada do país.

Em termos de correntes política, também parece que ninguém teve muita escolha a não ser abraçar o Facebook para chegar ao eleitorado. Os sites oficiais dos candidatos, seus canais de YouTube, os blogs dos correligionários e os veículos à esquerda ou à direita, todos dependeram do Facebook para criar ou ampliar sua audiência. Mesmo as fanpages dos candidatos também não sobreviveriam de suas funções oficiais: um vez que a lei eleitoral proíbe a compra de mídia por parte de políticos e partidos em época de eleição, está sendo preciso contar com uma militância bem construída e versada na rede, o que significa ter capacidade de disseminação no Facebook. Partidos mais organizados e com militância conectada não garantem nada, mas levam vantagem ao menos ocupando o encanamento da internet com seus conteúdos.

E o Twitter? É claro que o Twitter retomou este ano sua importância, confirmando a vocação para segunda tela de eventos ao vivo pela TV e assim turbinando os debates nacionais. Eu, particularmente, gosto mais do poder de síntese e da qualidade do material que circula pelo Twitter. Mas é impossível negar: em se tratando de internet, a festa da democracia esse ano foi marcada, divulgada e confirmada via Facebook.

A perigosa cultura narrativa do "Como Mudar o Mundo e Sua Vida"

14327861786_dbba6451e8_b (1)

Mês passado, o Gustavo Gitti publicou no Papo de Homem um texto criticando os excessos do que poderíamos chamar de “cultura do aprimoramento”. Disse ele:

“Estamos na era do aprimoramento pessoal. ‘Como’ e ‘melhorar’ são os novos mantras: como melhorar a alimentação, como melhorar o trabalho, como melhorar o relacionamento… Quando aparece a palavra ‘rim’, é porque o rim não está funcionando bem. Quando se fala muito em paz, é porque não há paz. Se cada vez mais ouvimos sobre desenvolvimento humano, felicidade e transformação, talvez seja por que nunca estivemos tão confusos em relação ao que isso realmente significa.”

O post envereda por questões internas ao ser humano sobre o que de fato significa transformação, buscando falar do que vai além das aparências externas. Sem entrar em questões semânticas absolutas, ele estabelece, para efeito de diálogo, uma distinção entre mudança e transformação:

“O processo da mudança funciona como uma constante busca por novas experiências. Quando alguém diz ‘Mudei’ na maioria das vezes quer dizer: ‘Troquei de experiência’. O processo de transformação trabalha com toda e qualquer experiência, com cada vez menos necessidade de buscar por novas experiências ou de alterá-las externamente.”

Mudança seria, então, uma “revolução” mais aparente e também mais superficial. A transformação, por outro lado, exigiria um auto-entendimento mais refinado e menos dependente de manifestações externas. Mudança se anuncia, transformação se empreende. Mudança rende poemas, canções, videocases. Transformações rendem seu próprio resultado, que muitas vezes vem de um processo longo, demorado e pouco cinematográfico. Às vezes, inclusive, rende apenas seu próprio processo. Mas o fato de, hoje, a mudança ser muito mais popular do que a transformação não deve ser debitado unicamente na conta da dificuldade inerente das transformações. A cultura contemporânea tem celebrado e estimulado intensamente a ideia de mudança – rápida, formulaica e vibrante, já que a transformação não rende boas histórias se contada honestamente, pois demora demais pra acontecer e nem sempre gera fogos de artifício.

Segue Gitti:

“Não é fácil detectar o limite do processo de mudança em uma cultura que promove tantas soluções desse tipo. O site do TED é uma boa amostra desse zeitgeist atual. As palestras, se vistas em conjunto, parecem comunicar uma mensagem assim: Você quer se transformar? Basta saber disso, estudar aquela pesquisa, ler tal livro, não esquecer daquilo, começar a dormir mais, usar esse novo modelo de pensamento, se exercitar assim, comer isso, fazer tal coisa, implementar tal hábito…”

14929399639_67013a4742_b

Os vídeos das conferências TED Talks, que condensam ideias complexas e impactantes de cientistas, intelectuais, artistas e empreendedores em no máximo 18 minutos, são um dos vetores culturais mais poderosos da última década na internet. O site do TED tem cerca de 1500 vídeos que já foram assistidos mais de um bilhão de vezes. A estética TED Talks de apresentar ideias influenciou o mundo corporativo, o universo acadêmico e toda uma geração de jovens empreendedores (bem como os Muppets). Graças ao TED, para milhões de pessoas, um projeto de “mudar” ou de “mudar o mundo” é algo que precisa caber em 18 minutos além de ser necessariamente contado de maneira empolgante. Que medo.

Embora eu tenha assistido com gosto muitos vídeos do TED e reconheça o poder e as virtudes da síntese e do storytelling na vida prática, quando se fala de transformação real e profunda, penso que é temeroso acostumar-se unicamente com um paradigma baseado em “eficiência de plateia”. E é visível, ao menos nos meios que frequento e que acompanho, a confusão gerada pela estética TED Talks nesse sentido. Há os que acham que o resultado da transformação deve caber numa palestra ou num vídeo; há os que acham que a palestra/vídeo É o resultado da transformação; e há, o mais perigoso, os que não reconhecem o valor das pessoas que transformam e que geram transformação mas cuja fala não se alinha com a estética TED Talks. Que medo, de novo…

Semana passada, o site Motherboard aproveitou o buzz em torno da nova rede social Ello para destrinchar a história meteórica da Diaspora. Assim como o Ello, a Diaspora surgiu como uma alternativa ao Facebook, mais livre, mais privada e supostamente embebida em ideais mais nobres. Não sabemos o que será da Ello, mas a Diaspora naufragou devido a uma mistura de obstáculos internos e de contexto econômico-cultural. Isso não impediu que seus criadores fossem assediados pela mídia e erguidos em pedestais cedo demais, muito antes que suas ideias pudessem se provar eficientes e realmente transformadoras. A narrativa de ascensão e queda da Diaspora, dramática porque envolve até mesmo um suicídio, é fruto, em parte, da cultura TED Talks – era esperado por todos os lados que eles condensassem um amadurecimento de ideia aceleradamente. Live fast, die young. O ditado cinquentão ainda faz sentido na era digital.

Narrativas de transformação dificilmente cabem em videocases ou posts, mas podem dar livros interessantes. Procure a trilogia de Fernando Gabeira, por exemplo. Em O que é isso, Companheiro?,  O Crepúsculo do Macho e Entradas e Bandeiras o ex-guerrilheiro conta a longa, batalhada e dolorosa transformação pela qual passou antes, durante e depois da ditadura. Só não espere lições de vida ou listas de atitudes positivas. Outra boa dica é Jovens de um novo tempo, despertai onde o Nobel de Literatura Kenzaburo Oe tenta “explicar todas as coisas do mundo” a seu filho deficiente e se perde nos próprios devaneios e dificuldades tentando triangular a relação com o menino, seu projeto literário e seu amor pela poesia de William Blake. Impossível condensar essa história de transformação em um post de Facebook. Se ainda não estiver convencido, leia Depois do Êxtase, Lave a Roupa Suja, coletânea de centenas de entrevistas do professor de meditação americano Jack Kornfield com monges, lamas, padres, freiras e outros mestres espirituais sobre o lado B da vida espiritual. Acho que nenhum deles ali palestrou no TED.

Em resumo, é bacana e bem vindo que exista no ar essa energia que tende à mudança, à busca de novas perspectivas, de alargamento de horizontes. Mas ela é melhor acompanhada por uma dose certa de ceticismo, daquele tipo que não desestimula a busca por transformação mas que também não aceita tratar de um assunto tão importante com uma abordagem de programa de auditório hipster. O padre jesuíta John Culkin disse no século passado que “Moldamos nossas ferramentas e nossas ferramentas nos moldam”. Neste século, quando a comunicação e a linguagem são forças dominantes mais do que o trabalho, poderíamos dizer: “Moldamos nossas narrativas e nossas narrativas nos moldam”. É algo no qual vale a pena prestar muita atenção.

***

Na verdade, se formos um pouquinho mais fundo, vamos encontrar essa narrativa incorporada fortemente à cultura americana, que continua sendo uma das grandes influências da cultura global, não importa o que falem sobre a Ásia ou a América Latina. No dia 11 de setembro, ironicamente,  o The New York Times publicou em sua revista de varieadades um longo ensaio chamado “A Morte da Idade Adulta na Cultura Americana”. Nele, o crítico de cinema A.O.  Scott traça uma linha que começa na literatura do século XIX do seu país e chega até os seriados e as sagas literárias atuais ressaltando, entre outras coisas, sua ode ao escapismo. E cita Love and Death in The American Novel, escrito na década de 60 pela crítica literária Leslie Fiedler, que diz: “Um dos fatores que determina o tema e forma de nossos maiores livros é a estratégia de evasão, essa retirada para a natureza e para a infância que faz nossa literatura (e nossa vida!) tão encantadoramente e irritantemente masculina (boyish).” Não é difícil associar esse tipo de mentalidade com a cultura TED Talks / Vale do Silício.

***

Se você gostou desse texto, talvez curta meus próprios relatos de mudança:

– A busca pelo sentido no trabalho e as videocassetadas.

– Por uma vida mais ordinária.

***

Fotos: Raumrot

A receita do Queens of The Stone Age pro rock fazer sentido em 2014

5294d0fee3cf1

A morte do rock já foi cantada e decantada e, pra mim, é ponto pacífico. O rock entrou no século 21 agonizante e não sobreviveu aos ventos da mudança. Foi substituído sem solenidade como vetor cultural significativo da juventude, que vem adotando outras formas de identificação e empoderamento bem mais a ver com o ambiente em que vivem. Pop global à base de hip hop + dance music, games, seriados, startups, redes sociais, apps, objetos de fun design produzidos na China, subculturas locais, cozinhar!! Qualquer outra coisa é mais pulsante do que um estilo que já se virou do avesso pelo menos umas cinco vezes.

Se nos seus países de origem, Estados Unidos e Inglaterra, é assim, imagine então no hemisfério sul, onde o rock e seus derivados comportamentais sempre foram um estrangeirismo inoculado pelo tráfico de informação das elites – muitas vezes de forma bem intencionada e gerando híbridos interessantíssimos, mas ainda assim um estrangeirismo. Com a população dos países emergentes se contorcendo em busca de uma identidade que faça jus a um novo protagonismo de classes antes relegadas ao mero papel de audiência, não é de se estranhar que o rock hoje vá se encaminhando, no mundo todo, para uma posição parecida com a do jazz, reservado a clubes e nichos nas suas melhores expressões e a pastiches mainstream nas piores.

E é aí que entra o Queens of The Stone Age, a banda que conseguiu construir a ponte entre o mainstream e o nicho com uma contribuição musical que se pensava impossível a essa altura do campeonato. Seu sexto disco, …Like a Clockwork, base do show que fizeram no último sábado em Porto Alegre, é uma demonstração prática da possibilidade de ainda se lançar música que esteja alinhada historicamente com o que se conhece por “rock” mas conectada a expressões culturais mais contemporâneas – como os já citados hip hop, dance music, startups, games, seriados e subculturas locais. O que, no caso do Queens, não é nenhuma novidade: para ouvidos atentos, a banda nasceu em 1996 já habitando o século 21. Desde o início, a intenção de seu líder Josh Homme foi fugir do clichê macho do rock setentista de espantar as minas da pista com um som que oferece apenas agressividade. A repetição da dance music e os falsetes da disco estiveram presentes já nos primeiros acordes de vida, quebrando a linhagem grunge do ruído antipático aos quadris e antecipando a cantoria melódica do rock dos anos 00, que viria a emergir na sua forma mais conhecida primeiramente com as operetas indie do Radiohead e depois com o Strokes. A música do Queens sempre foi sexy sem ser molenga e sempre foi firme sem ser totalmente pentelha. Mesmo no álbum mais esquisitinho, Era Vulgaris, havia aqui e ali um gancho para que o ouvinte incauto pudesse se segurar.

https://rd.io/i/QXvPgDPxWT0/

Agora, mais do que nunca, o Queens estende seus tentáculos e se liga ao presente via conexões inusitadas: como o hip hop, sobrevive de batidas, recortes, riffs fatiados e vocalistas convidados; como a dance music, busca o transe induzido da repetição e do ritmo; do universo dos games vem um poderoso imaginário gráfico à base de animação e da própria figura dos músicos; dos seriados, quem sabe, a noção de temporadas e de narrativa, já que cada disco demora pra sair e é envolvido em seu próprio drama de bastidores (um integrante demitido, um que cai fora, outro que morre, celebridades convidadas, etc); das startups, o recrutamento minucioso dos parceiros certos, a capacidade de se reconstruir depois de cada álbum; no quesito subcultura locais, o Queens é mestre pois Josh Homme até hoje comenta como tenta ainda reviver o astral da cena das generator parties, da qual fez parte no deserto californiano dos anos 90. Em resumo, o Queens é uma banda que, em termos musicais, soube deixar pra trás o pendor destrutivo de seus predecessores para abraçar a cultura cumulativa do século que recém começa. Ele não detona, ele empilha. Se não há espaço, ele recorta e cola, muitas vezes em ângulos inusitados.

Estamos vivendo uma década bizarra, na qual brotam califados versados em comunicação digtial, epidemias de doenças apocalípticas e tecnologias avançadíssimas que parecem aprofundar crises tanto quanto oferecem soluções. Quem precisa de música niilista nos fones quando todo o resto ao redor está ruindo? O Queens é uma banda que, apesar de não parecer, oferece segurança em tempos caóticos. Sábado passado, em Porto Alegre, cerca de cinco mil pessoas puderam testemunhar o poder de uma jukebox ciborgue de execução precisa porém emocionalmente intensa, que engaja um público certamente não iniciado nos meandros musicais que alimentam a banda mas que nem por isso se sente excluído ou empurrado para longe. O rock que interessa no novo século não vem para destruir ou para bloquear mas para permitir a fruição. Chega de search & destroy, bem-vindo ao rock do search & enjoy.

***

Foto: Matador Records

Tommy Kambota, campeão mundial de Não Vale Pisar nos Risquinhos nos anos 80

tommykambota

Publicado originalmente na revista Void número 99.

***

Um papo com Tommy Kambota

Quando o dentista Tomás Caetano, 47, entra no café que fica dentro do supermercado Zaffari do Menino Deus, em Porto Alegre, ele demora um pouco até chegar à minha mesa. Antes de sentar para começar nossa entrevista, precisa dar atenção aos funcionários e clientes do café, que o reconhecem e querem trocar cordialidades. Caetano é especialmente popular entre os idosos, os quais são a maioria dos presentes nesse horário (quase quatro da Tarde), mas os jovens funcionários também fazem questão de estender a mão por cima do balcão e cumprimentá-lo. Quando finalmente o tenho só para mim, faço menção de me levantar para recebê-lo, mas ele interrompe meu movimento com a mão: “Capaz, fica aí sentado.” A atendente vem logo atrás com um café duplo encimado por chantilly e polvilhado com canela que Caetano nem precisou pedir. “Foi assim nos anos 80”? Perguntei a Caetano. “Foi” ele disse. “Pra mais ou menos umas seis pessoas.” E solta uma gargalhada cavernosa.

Ninguém no café sabe, mas nos anos 80 Tomás Caetano foi Tommy Kambota, o único campeão mundial de um esporte radical que teve uma vida curtíssima porém muito rica enquanto subcultura. “Eu não sabia que isso existia como esporte.” me conta Kambota do alto dos seus quase dois metros sólidos e bem distribuídos em um corpo de 80 quilos coroado por cabelos precocemente brancos. “Pra mim, era uma brincadeira de criança que eu segui fazendo quando cresci. Eu fazia isso escondido, porque se fizesse na frente dos outros iam dizer que eu tinha problemas mentais. Quem é que com 16 anos ainda brinca de Não Vale Pisar nos Risquinhos? Então, quando um amigo meu que tinha parentes em Portugal voltou de lá com um fanzine punk que falava disso, eu fiquei louco. Pensei – bah, achei minha turma!”

Criado em Portugal por filhos entediados de imigrantes angolanos, o Não Vale Pisar nos Risquinhos antecipou em quase uma década a onda do Street Skate nos Estados Unidos e em quase duas décadas a criação do Parkour na França. A simplicidade de seu funcionamento é seu maior trunfo. O praticante de Não Vale Pisar nos Risquinhos escolhe um trecho de calçada qualquer e se propõe a atravessá-lo sem pisar no cimento que une as pedras e sem apoiar as mãos em lugar algum. Como o Street Skate e o Parkour, os melhores atletas de Não Vale Pisar nos Risquinhos são os que estabelecem um diálogo com a cidade e os melhores circuitos em geral dependem das imperfeições e das idiossincrasias da arquitetura urbana. Quanto mais _difícil_ uma calçada, melhor.

Quando leu no fanzine punk português Cadáver Esquisito que angolanos malucos estava fazendo sessions de Não Vale Pisar nos Risquinhos em calçadas dos subúrbios de Lisboa, Kambota se sentiu autorizado a sair do armário como atleta street da modalidade. Quem o vê hoje, de terno e gravata ou de jaleco de protesista, não imagina. “Até essa época, eu pegava umas ruas menores e escondidas, como a Barão do Tefé ou a Uruguaiana. Mas depois de ler a matéria eu pensei – ah, foda-se… eu botava o meu Adidas Marathon, que tinha uma ponta boa, botava uma bermuda e uma camiseta da Ocean Pacific, que era moda na época, um boné pra conseguir enxergar bem no sol e mandava ver. Às vezes, eu saía de casa às três da tarde e ficava fora até a meia noite, pra desespero dos meus pais. Na época não tinha celular e era normal a gente ficar na rua, mas eu sempre exagerava. É que eu realmente fiquei obcecado com Não Vale Pisar nos Risquinhos. Pisar era uma cachaça.”

“Pisar” é como os praticantes de Não Vale Pisar nos Risquinhos se referem às sessions. Aos 16 anos, sem interesse em skate, surf ou bicicross, Kambota assumiu sua idiossincrática cachaça  e passou a pisar diariamente, primeiro cobrindo todo o seu bairro, o Menino Deus. “Aqui era perfeito porque tinha uma variedade de calçadas muito grande. Do lado de lá da Getúlio eram umas ruas com casas mais simples, com aquelas calçadas de basalto irregular, sabe? Que é como o cara começa, umas pedras maiores… Mas as melhores calçadas pra pisar estavam aqui desse lado da Getúlio, na Ganzo e na Bastian. Tinha até uns trechos com umas pedras portuguesas minúsculas que, nossa…” Kambota bufa, como que revivendo por alguns segundos a emoção de dobrar uma esquina e dar de cara com a calçada perfeita – ou imperfeita.

Durante anos, Tommy Kambota pisou solitário explorando Porto Alegre inteira, não encontrando mais ninguém que dividia a obsessão e ganhando fama de maluco no bairro. “Quando tu pisa por muitas horas, tu entra num tipo de transe, porque tudo que tu vê são os próximos dois ou três metros. Tu adquire um tipo de visão tubular que turva tudo ao redor e foca só num corredor estreito que fica bem na tua frente. As pedras parece que sobem alguns centímetros do chão e pra quem pisa bastante é muito simples encontrar o próximo ponto de apoio, porque tu fica com o olhar treinado. É parecido com quem escala na mão, sabe? O cara vê agarras onde ninguém vê. Pois é, pra mim é a mesma coisa com as calçadas, onde tu só vê umas pedras bagunçadas, eu vejo um caminho claro. Eu não enxergo mais nada, eu me concentro cem por cento.”

Curiosamente, o caminho do que fazer com aquele hobby não era tão claro para Kambota. Já com 17 anos e prestando vestibular para odontologia, ele continuava não encontrando parceria para conversar ou praticar Não Vale Pisar no Risquinhos. Mas os fanzines bissextos que chegavam de Portugal o fizeram não desistir. “Eu comecei a me corresponder com os punks de Portugal sim, mas só pra descobrir o endereço dos angolanos. Os punks europeus eram muito loucos, muito politizados. Eu não tinha estofo pra conversar com eles. O cara que escreveu a notinha sobre o Não Vale Pisar nos Risquinhos de lá tinha perdido contato com aquela turma, então eu tive que ficar me correspondendo com eles só pra encher linguiça e convencer eles a procurarem alguém que conhecesse. Um dia rolou. E foi muito louco.”

A conexão direta, via carta, com a pequena turma de angolanos que pisavam na periferia de Lisboa rendeu oito meses de troca de perspectivas sobre o esporte. “Os angolanos tinham uma visão bem poética da história toda. Eles falavam coisas do tipo ‘queremos escrever a crônica definitiva nos cadernos da cidade.’ E eu pensava – então tá né? Eu tinha uma relação mais prática com o Não Vale Pisar nos Risquinhos. Eu queria era pisar, eu queria a experiência direta de me perder na calçada.” A turma era pequena: dois lisboetas e três angolanos vivendo em Lisboa e mais um angolano que ficou em Angola. Mas a correspondência era rica. “A gente trocava muita foto de calçada com anotações de vias e de técnicas de pisada. Também tinha uma ideia de fazer intercâmbio de tênis, mas nunca aconteceu porque a gente era tudo guri novo, sem dinheiro, né? O nossos sonho era ser que nem o pessoal do skate e do surf: ter marcas próprias do nosso esporte, uma cultura visual só nossa. A gente desenhava alguns tênis, umas roupas, uns logotipos, mas era tudo viagem. Acho que o número de praticantes de Não Vale Pisar Nos Risquinhos nunca passou de nós sete.”

Pergunto sobre o campeonato e ele dá uma risada jogando a cabeça pra trás. “Isso foi outra maluquice. Porque se a gente não tinha dinheiro pra trocar tênis, imagina pra viajar. Viajar pra outro país era coisa de milionário nessa época né? Isso era o quê? Oitenta e sete? É. Mas a gente fez o seguinte: a gente decidiu que ia fazer o campeonato por vídeo. Cada um ficou de arrumar um jeito de gravar uma pisada sua em VHS e todo mundo ia mandar pro Michel, um dos angolanos de Lisboa. Ele editou tudo numa fita só e a gente ia mandar pelo Correio um pro outro, fazer um circuito. Cada uma que recebia a fita, fazia uma ficha votando com notas nas pisadas dos outros. O circuito inteiro demorou seis meses e a apuração do Michel deu que eu fui campeão. Recebi um pacote com uma cópia da fita e uma faixa feita pelo pessoal de Lisboa. Foi uma sensação incrível… imagina, tu acha que tu é o cara mais esquisito do mundo e recebe um reconhecimento que, de certa forma, te legitima. Foi muito emocionante, mas eu não contei pra ninguém, foi uma viagem que eu vivi pra mim mesmo.”

O primeiro Campeonato Mundial de Não Vale Pisar nos Risquinhos foi também o último. “A turma de Lisboa foi toda presa numa viagem pra Angola. Eles eram parte de um esquema de mulas de heroína e cocaína. Quem me contou foi o Felizardo, que morava em Luanda mas que fugiu pra Moçambique depois dessa história. Eu fiquei apavorado, tava trocando cartas com fotos e uma fita de vídeo com uns caras que faziam parte de uma rede de tráfico! Imagina, eu tinha 16, 17 anos, fiquei apavorado, queimei tudo, as cartas, as fotos, a fita, a faixa, até meus tênis e as roupas que eu usava pra pisar. Aí fiquei meio bloqueado com isso. Junta com o fato da faculdade estar começando a pegar forte, não só os estudos, mas as festas também, comecei a sair com umas gurias e aos poucos deixei essa história pra trás.”

Caetano me pergunta como é que eu descobri isso tudo e como cheguei nele. Conto da minha pesquisa de fanzines punk portugueses, de como achei a notinha sobre Não Vale Pisar nos Risquinhos e seu redator, Felizardo. Relato que Felizardo está vivo e bem, tocando sua banca de revistas em Maputo, que me deu seu nome verdadeiro e o antigo endereço. Depois, foi um pouco de pesquisa de campo e algum Google para chegar no telefone do consultório. Ele me escuta surpreso, como se eu fosse um tipo esquisito – uma rápida inversão de perspectivas. Mas logo volta ao modo simpático que conquista os velhinhos e balconistas do Menino Deus. Anuncia que precisa voltar ao trabalho de protesista e se levanta para me dar um abraço. Pede para eu enviar a matéria a ele por email quando for publicada; se despede de todo mundo; oferece para colocar meu café na sua conta e sai pelo hall do supermercado – sem olhar para trás, olhando apenas à frente, provavelmente esquadrinhando o chão com seu olhar tubular e sua concentração incomum. Eu dou uma caminhada rápida até a porta e grito, antes que ele dobre a esquina da Avenida Ganzo: “Kambota! Não esquece: não vale pisar nos risquinhos!”

Três notas rápidas sobre cultura pop e cultura digital

14189303799_e984709bd4_b

1) Corrijam-me se eu estiver ruim de memória, mas suspeito que o comercial da F-1 da Globo usando “Taca-le pau” é o primeiro grande registro de um bordão que migra DA internet PARA a TV. Não é questão de brincar de disputinha TV x Internet, mas sim mais um sintoma interessante sobre a diversidade de fontes de cultura pop que a internet trouxe pra nossa realidade. E isso, lembrando, que ainda tem mais ou menos metade da população brasileira pra se conectar ainda…

2) A ânsia em atender a suposta vontade das pessoas de criarem seus caminhos de conteúdo está levando empresas de conteúdo digital (mídia e publicidade) a abrirem mão da responsabilidade de criar hierarquias de informação. Isso está se refletindo também na mídia impressa e eletrônica. O resultado não tem sido democracia, mas bagunça.

3) Existe uma ideia no ar de que as pessoas sempre pagam por aquilo que lhes é valor. No digital, as pessoas pagam pelo que não conseguem de graça, seja por preguiça ou por desconhecimento técnico pra chegar lá. O valor no digital na maior parte das vezes não está no produto/conteúdo, mas no acesso (o que é um tanto quanto deprimente para quem cria produtos e conteúdos).

***

Foto: Raumrot.