Ontem à noite, o antropólogo e etnógrafo Massimo Canevacci esteve na Unisinos, em São Leopoldo, para falar sobre “Smart cities, cultura digital e renovação política. Contradições e possibilidades da revolução 4.0”. Mas quem estava esperando mais uma palestra mostrando os benefícios de se espalhar sensores pela cidade para gerenciá-la de forma mais eficiente, com inteligência artificial e visualização de dados, certamente se surpreendeu. Questões menos óbvias, mas claramente fundamentais, foram propostas por Canevacci para enriquecer o conceito de Smart Cities buscando evitar que a gente cometa os mesmos erros que projetistas e pensadores do passado recente.
Canevacci começou traçando uma linha histórica e artística do conceito de ubiquidade, essa ideia de se estar ao mesmo tempo em todos os lugares em nenhum, essa desterritorialização da nossa identidade que é muito forte na cultura digital mas que, segundo ele, já começou na era do rádio. Italiano, Canevacci citou o exemplo do rádio durante o facismo e o nazismo, que era considerada “a voz do Fuhrer” em toda a Alemanha ou do Duce na Itália, uma presença espectral que estava simultaneamente em todos os lugares em nenhum – como todo o poder simbólico e concreto que isso tem. A partir daí, lembrou os estudos de Adorno sobre a ubiquidade do rádio e citou David Lynch, David Cronenberg, Black Mirror, Nam June Paik e Tran Ba Vang como exemplos de artistas e obras que compreenderam a identidade ubíqua das pessoas antes mesmo da academia estudá-la em toda sua riqueza.
Mas o que a identidade ubíqua tem a ver com as Smart Cities e a Indústria 4.0? Assim como a cibernética foi constituída como campo tendo à mão ideias das teorias sociais, Canevacci propõe que é preciso entender muito bem essa fragmentação da identidade das pessoas (e dos objetos, que também passam a estar em todos os lugares e em nenhum com a Internet das Coisas) para não acabarmos gerando mais problemas do que soluções com toda a estrutura tecnológica que está sendo pensada e projetada para a integração de cidades e objetos com as redes. Para ele, o conceito e os projetos de Smart Cities ainda são muito debatido na base do “sensores + dados + inteligência artificial = soluções para todos nossos problemas” (o que Evgene Morozov chama acidamente de “solucionismo”) e sugere que é importante & urgente olharmos para isso pensando melhor o lugar das pessoas e de suas questões subjetivas nessa rede. Isso, sob pena de repetirmos o erro de querer resolver complexos desafios humanos apenas com a tecnologia. A audiência de Mark Zuckerberg com o Senado americano, que aconteceu algumas horas antes da fala de Canevacci, é um exemplo vivo do que pode acontecer quando a tecnologia é projetada sem um viés cultural, ético, social e humano.
Canevacci também ressaltou que é preciso revisar e renovar certos conceitos teóricos para dar conta dos desafios contemporâneos no âmbito das Smart Cities e da Revolução 4.0. Sua própria pesquisa está buscando expandir conceitos do marxismo (do fetiche da mercadoria ao metafetichismo) e da teoría crítica (da personalidade autoritária para a personalidade digital autoritária) para ajudar a construir alternativas viáveis de modos de pensar e de viver que os projetos revolucionário-tecnicista (por obsessão com o futuro tecnológico) e revolucionário-humanista (por obsessão com fórmulas do passado) não estão conseguindo. Ele perguntou literalmente: “qual é a proposta da esquerda para a Indústria 4.0? Qual é a proposta da FIESP para a Indústria 4.0?” E aproveitou para conclamar os interessados a “ensinar a esquerda a pensar essas questões e a se comunicar” e a reformular a universidade rumo a uma proposta mais transdisciplinar e menos refém de suas caixinhas clássicas.
Pois, ao vivo, em pouco menos de 2 horas, Canevacci mostrou qual é a vantagem de sermos transdisciplinares e não estarmos fechados em nenhuma caixinha.
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Em um momento muito perspicaz e bonito, Canevacci lembrou que foi a ubiquidade de Marielle Franco que tornou ela uma ameaça ao establishment político: Marielle não pertencia a um lugar só; estava na favela e fora dela, em todos os lugares e em nenhum. Se estivesse só dentro ou só fora, disse o professor, ela não seria um “problema” e não teria sido assassinada. Tragicamente, a morte de Marielle a tornou ainda mais ubíqua – ou assim esperamos.
E quem diria: a rede social que passou boa parte do ano tendo sua decadência prevista por pesquisas e especialistas se tornou a grande estrela digital das eleições de 2014, mesmo antes do segundo turno terminar. Com cerca de 90 milhões de usuários ativos, dos quais 59 milhões acessando-o diariamente (dados de agosto), o Facebook vem combinando grandes números de audiência na internet com a aderência de todas as correntes políticas e classes sociais, além de permitir a discussão política em diferentes níveis de profundidade. Muita gente ama, muita gente o odeia o Facebook, mas todo mundo declara seu amor e ódio eleitoral postando no próprio.
Em 2010, nas últimas eleições presidenciais, éramos menos de 9 milhões de brasileiros no Facebook e 9 milhões no Twitter. O Orkut era o terceiro site mais acessado do país e contava com 30 milhões de usuários, mas seu formato mais tosquinho e a população menos conectada e menos móvel impediam um fluxo tão orgânico e pulsante de conteúdos como temos hoje. Além do mais, os Protestos de Junho de 2013 ainda não tinham acontecido e política não era uma pauta tão quente como é agora (embora eu tenha a impressão que no Facebook TODAS as pautas tem pegado fogo). Na verdade, vivemos em um país tão diferente de 2010 em termos de cultura digital que é quase impossível fazer comparações.
Por um lado, o Facebook foi beneficiado pelo contexto de 2014: nos últimos dois anos, pudemos começar a usar a palavra “popular” para falar de smartphones, internet móvel e vídeo na internet. Nos últimos 15 meses, tivemos dois grandes eventos nos quais testamos intensamente nossas redes pessoais no que diz respeito a discussões nacionais – os já citados Protestos de Junho e, ligado a isso, a Copa do Mundo. Mas também há os predicados do próprio Facebook, sendo que o mais importante de todos é que ele combina os principais formatos de postagens e compartilhamentos em uma única plataforma: se você quer condensar sua opinião política em 140 caracteres, você pode; se você quer se estender, escrevendo um post de 2.000 caracteres manda; se você se contenta em compartilhar um card com um meme, tá valendo; vídeos oficiais do seu candidato são aceitos; vídeos não oficiais também são válidos; selfie na urna? Tudo bem! O Facebook não tem preconceitos e aceita todo mundo que queira se expressar do jeito que bem entender – desde, claro, que esteja demograficamente dentro da população mininamente conectada do país.
Em termos de correntes política, também parece que ninguém teve muita escolha a não ser abraçar o Facebook para chegar ao eleitorado. Os sites oficiais dos candidatos, seus canais de YouTube, os blogs dos correligionários e os veículos à esquerda ou à direita, todos dependeram do Facebook para criar ou ampliar sua audiência. Mesmo as fanpages dos candidatos também não sobreviveriam de suas funções oficiais: um vez que a lei eleitoral proíbe a compra de mídia por parte de políticos e partidos em época de eleição, está sendo preciso contar com uma militância bem construída e versada na rede, o que significa ter capacidade de disseminação no Facebook. Partidos mais organizados e com militância conectada não garantem nada, mas levam vantagem ao menos ocupando o encanamento da internet com seus conteúdos.
E o Twitter? É claro que o Twitter retomou este ano sua importância, confirmando a vocação para segunda tela de eventos ao vivo pela TV e assim turbinando os debates nacionais. Eu, particularmente, gosto mais do poder de síntese e da qualidade do material que circula pelo Twitter. Mas é impossível negar: em se tratando de internet, a festa da democracia esse ano foi marcada, divulgada e confirmada via Facebook.
No último dia 20 de agosto, o cientista inglês Richard Dawkins, célebre defensor do pensamento científico racional, do evolucionismo e do ateísmo, causou uma onda de revolta na internet após publicar na sua conta do Twitter uma resposta a uma seguidora que soou a muitos ouvidos como uma declaração eugenista, de alguém que prefere eliminar da face da Terra seres humanos com defeitos congênitos. Durante um diálogo travado diretamente na rede social, a seguidora de Dawkins comentou, citando-o, que não saberia o que fazer se descobrisse que estava carregando na barriga um feto com Síndrome de Down. Dawkins respondeu, também citando-a: “Aborte e tente de novo. Seria imoral trazê-lo ao mundo se você tiver escolha”. No dia seguinte, após ter percebido a barbeiragem que fez, o biólogo publicou em seu site uma longa nota que misturava desculpas com esclarecimentos filosóficos acerca de sua posição pró-escolha do aborto. Nela, admite ter se expressado de forma grosseira e insensível em 140 caracteres, mas sustenta que “se a sua moralidade é baseada, como a minha, no desejo de incrementar a felicidade e reduzir o sofrimento, a decisão deliberada de dar à luz a um bebê com Síndrome de Down quando pode escolher abortá-lo nos primeiros estágios gravidez poderia ser, na verdade, imoral do ponto de vista do bem estar da criança”.
Ao tomar contato com essa história, minha primeira reação interna foi uma que Dawkins critica: revanchismo baseado na conexão emocional com meu filho de dois anos e meio portador de uma outra síndrome (falo disso mais adiante). Fiquei irritado e pensei em escrever algum rápido desaforo no Facebook, tagueando pessoas que sei que são fãs de Dawkins (“olha aí, o amigo desalmado de vcs!!”). Mas, diferente dele, já aprendi que redes sociais e reações impulsivas não combinam e fiz um esforço para tentar organizar o que fosse possível dos meus sentimentos antes de escrever qualquer coisa, buscando uma perspectiva com um tempero mais racional que colabore de forma mais positiva para esse debate. Abaixo vai o resultado.
Primeiro ponto: embora eu não considere Dawkins facista, eugenista ou desalmado, tenho certeza que tanto sua abordagem desastrada no Twitter quanto a nota de esclarecimento em seu site são profundamente prejudiciais para uma cultura de aceitação da diversidade não apenas no que diz respeito a portadores de Síndrome de Down, mas sim com todo e qualquer tipo de diferença. Dawkins deixa claro que quando fala de aborto se refere a fetos e quando fala de fetos não os considera ainda humanos compleamente formados, passíveis de sofrimento (não vou entrar nessa discussão aqui). Além disso, ainda ressalta que “existe uma profunda diferença moral entre ‘esse feto deveria ser abortado agora’ e ‘essa pessoa deveria ter sido abortada muito tempo atrás’. Mas, minúcias filosóficas à parte, a mensagem que se propaga é tão simples quanto seu tweet original: escolher ter um filho com síndrome de Down sabendo desde os primeiros estágios que ele vai crescer com limitações é imoral na opinião de um dos mais importantes cientistas do mundo, especialista em evolucionismo. Por mais controverso que seja Richard Dawkins, o efeito social disso não é nada desprezível.
Segundo ponto: provavelmente escapa a Dawkins a tremenda ironia de sua declaração, já que é justamente esse tipo de atitude que torna a vida de qualquer pessoa com deficiência mais difícil e mais sofrida. Antes de mais nada, não faz bem a ninguém ser considerado abortável em retrospecto e, mais uma vez, a explicação de que ele não está falando de humanos completamente formados mas de fetos não é contrapeso suficiente quando temos séculos de preconceito e incompreensão entranhados em nossas estruturas sociais e políticas. Na maior parte do mundo, inclusive nos países mais desenvolvidos economicamente, os indivíduos considerados diferentes da média ainda encontram grandes dificuldades para serem reconhecidos como pessoas e cidadãos. Acesso a tratamento, educação e convivência são frequentemente conquistados graças à luta ferrenha de pais, parentes, ativistas e dos próprios “diferentes”. Na base de obstáculos burocráticos, médicos ou práticos está sempre a dificuldade em ser reconhecido como um ser humano completo.
Como escreve Andrew Solomon em Longe da Árvore, comentadíssimo livro que mergulha no universo de dez categorias de minorias: “Na vasta literatura sobre os direitos dos deficientes, os estudiosos enfatizam a separação entre impairment (dano, debilitação), consequência de uma condição orgânica, e disability (incapacidade, deficiência), resultado do contexto social. Ser incapaz de mover as pernas, por exemplo, é uma debilitação, mas não poder entrar em uma biblioteca pública é uma incapacidade.” Ou seja, muitas das restrições que tornam menos feliz a vida de deficientes, para usar o parâmetro moral de Richard Dawkins, não são fruto de suas limitações, mas sim das limitações do contexto social que os rodeia e da incompreensão acerca de seus direitos e necessidades. Incompreensão essa que Dawkins acaba de ajudar a amplificar.
Nesse sentido, o capítulo sobre Síndrome de Down de Longe da Árvore é asustador para os padrões contemporâneos – mas muito pedagógico. Está tudo lá, com fontes: no século 19, os Downs eram considerados por alguns estudiosos como “pesos mortos para a prosperidade material do Estado.” A Suprema Corte Americana, no final da década de 20, promulgou uma decisão pela esterilização forçada de pessoas com deficiências intelectuais que durou cerca de 50 anos. Em 1968, a respeitada revista Atlantic Monthly publicou um artigo de um especialista em ética que sugeria não haver culpa em se abandonar um bebê com Síndrome de Down porque “a verdadeira culpa surge apenas de um crime contra uma pessoa e alguém com Down não é uma pessoa”. Foi só a partir dos anos 70 que se passou a considerar que portadores de Síndrome de Down poderiam ser estimulados a evoluir intelectualmente e funcionalmente, o que em pouco tempo provou ser viável em um nível absolutamente inimaginável nas décadas anteriores. Eu sei que Dawkins não refuta isso e nem defende diretamente a redução de oportunidade de crescimento para qualquer pessoa com deficiência, mas suas declarações são facilmente depositadas na conta dos deficientes como um pesado débito. De novo: se ele quer mesmo incrementar a felicidade, como reza sua moralidade, seu tweet não está colaborando.
Terceiro ponto: um artigo no The New York Times, motivado pelo tweet de Dawkins, reuniu uma série de estudos que, entre outras coisas, comprovam que jovens adultos com Síndrome de Down tem habilidades adaptativas mais sofisticadas do que sugerem seu baixo QI, o que impacta diretamente numa melhor probabilidade de qualidade de vida. O texto ainda coloca: “os dados indicam que pessoas com Síndrome de Down e os familiares que os cuidam sofrem menos do que se supõe. Além disso, mesmo que a Síndrome de Down interponha desafios inquestionáveis, pesquisas sobre opções de tratamento sugerem que há base para um otimismo cauteloso. Em qualquer cálculo moral que o Sr. Dawkins e outros possam querer fazer, esses fatos merecem ser levados em consideração com seu devido peso.” Sob esse ângulo, tanto a declaração original quanto a explicação extensa de Richard Dawkins soam, no mínimo dos mínimos, mal informadas.
Tenho um filho de dois anos e meio que tem Síndrome de Prader Willi, que é diferente da Síndrome de Down (tenho um sobrinho com Down) mas, para efeitos práticos, não muito menos complicada de se lidar. Logo, é claro que escrevo esse texto com o espírito do pai que quer proteger o filho e se proteger de vê-lo sofrer em dobro, pela sua condição e por conta de uma cultura de diversidade recente, frágil, ainda passível de ser corroída por declarações ignorantes. Mas também tem outro motivo que é ao mesmo tempo egoísta e amplamente social: a convivência íntima com uma pessoa que nasceu e vai crescer tão diferente do que eu imaginava ressaltou minhas próprias inclinações não-conformistas. Apesar de ainda precisar negociar todos os dias com meus próprios preconceitos e bloqueios internos na aceitação do diferente (e eles não são poucos), me dou ao direito de parafrasear Andrew Solomon: “Odeio a perda de diversidade no mundo, ainda que às vezes fique um pouco desgastado por ser essa diversidade.”
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A Síndrome de Prader Willi, que meu filho tem, é uma condição genética um pouco mais rara do que a Síndrome de Down. Se você quer conhecer, leia o material abaixo e cuidado com o que encontra no Google. Há muitos textos e vídeos alarmistas, que tratam os casos mais severos com um certo sensacionalismo. Na apresentação abaixo há links para fontes confiáveis.
O clima emocional que vem se tornando cada vez mais tenso no Facebook por causa das eleições está me lembrando muito os episódios mais políticos da série inglesa Black Mirror. Criada em 2011 pelo produtor e roteirista Charlie Brooker, a série tem duas temporadas de três episódios cada e trata do comportamento humano infuenciado pela tecnologia num futuro próximo. Já escrevi sobre a primeira temporada no post Black Mirror, a série do agora e a quem está intrigado ou incomodado com a alta temperatura do clima eleitoral, eu sugiro fortemente assistir dois episódios específicos da segunda temporada.
O episódio 3, The Waldo Moment, conta a história de um personagem de computação gráfica que é usado pra sacanear políticos e autoridades em um programa de entrevistas de final de noite. Os entrevistados, alienados dos gostos do público, são enganados pela emissora de TV pra pensar que estão participando de um programa infantil quando na verdade estão sendo massacrados sarcasticamente pelo personagem. Waldo é controlado e dublado remotamente por um humorista talentoso que entra em parafuso quando a produção resolve lançá-lo (Waldo, não o humorista) como candidato para enfrentar um oponente conservador. A disputa sai dos estúdios de TV e vai para as ruas, onde uma van equipada com uma tela gigante segue o conservador para que Waldo possa espinafrá-lo em praça pública.
Não vou dar spoilers, mas os desdobramentos de uma disputa entre um personagem de computação gráfica e um candidato humano são conduzidos de maneira a subverter totalmente o que seria o clichê dessa temática – comparar a artificialidade dos políticos com as do personagem. O que acontece é justamente o contrário. Emergem, por trás da iniciativa inovadora e bem intencionada, os sentimentos humanos mais confusos e negros de todos os envolvidos. “The Waldo Moment” me lembra muito o que vejo todos os dias no Facebook: as críticas à baixa qualidade e às incoerências dos políticos muitas vezes vem de pessoas que não parecem aplicar a si mesmas o filtro que querem aplicar a eles.
O episódio 2, The White Bear, é simplesmente perturbador quanto ao ponto que podemos chegar coletivamente se deixarmos que o ódio social e político tome conta da nossa cultura. Começa com uma mulher, Victoria, acordando em um quarto sem lembrar do que aconteceu e como foi parar ali. Constantemente cercada pela foto de uma menina e de um homem, que parecem ser seu marido e sua filha, ela é perseguida por homens mascarados e armados enquanto dezenas de pessoas a filmam e fotografam com celulares sem oferecer qualquer tipo de ajuda. Caçada sem descanso, ela acaba encontrando o que parece ser algum tipo de milícia de resistência, mas pouca coisa faz sentido na sucessão veloz dos acontecimentos.
Uma virada no meio do episódio contextualiza o que Victoria está passando, mas não posso dar qualquer tipo de pista pra não estragar a surpresa. Apenas digo que o desfecho é mais um toque importante a respeito do perigo que corremos de nos desumanizarmos quando incentivamos atitudes violentas num contexto de onipresença das mídias eletrônicas e digitais. Outro ponto que tem me lembrado as reações impulsivas e exageradas no Facebook nessas eleições onde toda declaração e todo candidato é alvo de reações em altíssima amperagem.
Black Mirror não saiu no Brasil e está disponível apenas nos torrents. Dê um jeito de assisti-lo antes do final das eleições pois, como eu disse no meu primeiro post, ela é um dos melhores comentários sobre o agora disfarçado de ficção científica.
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Nada a ver com as eleições, mas ainda digno de nota: o primeiro episódio da segunda temporada de Black Mirror é tão bom e instigante quanto os outros. Conta a história de uma viúva que resgata o convívio com o ex-marido através de um avatar físico, meio clone, que se comunica com ela a partir de todas as memórias digitais que ele acumulou na vida. Mais uma vez parece loucura ou ficção científica. Mas já tem uma startup planejando oferecer um serviço semelhante. Segundo a Proxxima, o Eterni.me usa acesso aos dados digitais do falecido para “criar uma ‘consciência’ no computador que permitirá a interação com outros usuários.” O site do Eterni.me já oferece cadastro para interessados e faz uma promessa grandiosa que parece mesmo saída de um roteiro pra TV: “Simply become immortal”.
Dica: o episódio é muito mais profundo e interessante do que a proposta da startup.
A ideia de que os próprios cidadãos podem se organizar em grupos autônomos e não depender de Governos e empresas para melhorar as cidades onde vivem parece estar passando por uma segunda onda de evolução no Brasil. Após os protestos de junho de 2013, que estabeleceram um marco histórico e político junto a todo e qualquer movimento social e criativo, restou uma pergunta: e agora? O que fazer? Pra onde ir? Alguns setores políticos, tanto à esquerda quanto à direita, enunciaram a questão com escárnio, desdenhando o efeito difuso dos protestos. Outras cabeças, mais ligadas, transformaram a dúvida em investigação estratégica, buscando respostas estruturais e de longo prazo baseada em vivências e não apenas em teorias empoeiradas, gritos de ordem autistas ou críticas sarcásticas.
A consultora de design estratégico e planejadora Carla Link é um desses exemplos. A tese de mestrado dela em Design Estratégico (resumo da defesa logo acima) não estava diretamente ligada às Jornadas de Junho. Mas ao propor uma investigação da atuação de coletivos urbanos com a lente rigorosa e sistemática do Design Estratégico, a Carlinha descobriu o território lodoso e fascinante da intersecção entre prática e teoria quando se trata de tornar nossas cidades mais humanas. Abaixo, segue um papo que tive por email pra esmiuçar mais o que ela viveu durante o processo do mestrado e da relação com o coletivo Ocupe e Abrace, responsável pela revitalização de uma praça na Pompeia em uma das cidades mais desafiadoras do mundo quando se trata de humanizar espaços urbanos: São Paulo.
Conector: De onde surgiu a vontade de cruzar o tema do Design Estratégico com o de cidades mais humanas e criativas?
Carla: Tudo começou com uma ida a Nova Iorque depois de quase dois anos morando em São Paulo. Em primeiro lugar, vi que uma cidade que é centrada nas pessoas, que valoriza os espaços públicos e possibilita o uso de meios alternativos de deslocamento já é impressionante pra uma nova paulistana, que demorou um pouco para se adaptar ao tempo da cidade ( que é muito diferente de Porto Alegre). Além disso, eu tive oportunidade de ir em duas exposições fantásticas que tratavam do assunto. Uma foi a exposição interativa sobre os 100 anos da IBM, focada em smart cities. Lá, eles mostravam diversos casos e projetos, incluindo o Rio de Janeiro, onde a leitura de dados apoiava o desenvolvimento e melhoria dos sistemas urbanos. Segundo, no MoMA, havia uma outra exposição chamada Talk to me, que tratava justamente de como o design apoiava diferente diálogos e interações na cidade. Esses foram os três principais estímulos. Eu já estava lendo e descobrindo mais sobre a maneira de pensar do design e essas referências me fizeram enxergar uma possibilidade de ação. Que seria usar as minhas habilidades da carreira em comunicação pra repensar o diálogo entre cidade e pessoas.
Conector: Por que tu escolheu estudar o caso do Ocupe e Abrace especificamente?
Carla: Bom, eu decidi fazer meu projeto sobre São Paulo por ser a cidade mais caótica do Brasil. E a minha ideia inicial era unir duas referencias teóricas: smart cities, que utilizam os dados e a tecnologia como base para novas relações, e as comunidades criativas, que se conceituam pela união das pessoas pra geração de uma nova solução pro seu próprio cotidiano. Eu queria explorar como São Paulo estava sendo impactada por essas forças. Comecei um super mapeamento de iniciativas na cidade e acabei encontrando uma plataforma de inovação aberta chamada Cidade Democrática, que estava começando um processo de geração de ideias para o bairro da Pompeia, vizinho a Perdizes, onde eu morava na época. Aí, eu comecei a participar dos encontros de co-criação e, ao mesmo tempo, a conversar com pessoas de outras iniciativas. Aos poucos, alguns moradores decidiram montar um grupo pra colocar uma das ideias em prática: a revitalização da Praça Homero Silva, o único espaço verde do bairro. Eles se juntaram com outros dois movimentos que estavam começando. A criação do grupo se mostrou um exemplo prático das teoria das comunidades criativas e eu acabei participando de toda a concepção. Ao mesmo tempo, tive que desistir do tema de smarts cities porque em São Paulo não havia investimentos nessa esfera. Então, inicialmente minha ideia era focar na cidade e, aos poucos, à medida em que vi o grupo nascendo e crescendo, percebi a riqueza de explorar esse movimento que estava propondo uma nova visão da cidade. Foi um pouco do destino, um pouco de sorte e, no fim, um foco mais específico pro meu projeto.
Conector: O que te surprendeu mais ao ir a campo, ao confrontar tuas primeiras ideias e teses com a realidade? O que tu sentiu que é uma questão urgente da rua, distante da teoria?
Carla: Pra mim, foi um grande choque de realidade participar das discussões e propostas do grupo. Vinda da área de propaganda e das grandes marcas, demorou pra eu entender que a relação que as pessoas estavam propondo pro espaço era pequena, local e orgânica. Ou seja, feita pelas pessoas e pras pessoas do bairro. Rapidamente surgiram possibilidades de grandes marcas patrocinarem a primeira iniciativa, o Festival na Praça, e o grupo foi totalmente contra. Claro, o objetivo não era a propagação da ideia e o ineditismo da iniciativa, ou o quanto é hype, cool, trendy, mas sim de criar uma nova proposta de relação entre os vizinhos e aquele espaço. Se uma marca viesse patrocinar aquele evento, seria um “statement” da marca e não das pessoas. Foi importante esse choque de visões, que acontecia a todo instante pelo desejo de entender o objetivo real do grupo e dos seus interesses. Acho que o meu grande aprendizado no projeto foi entender que esse “despertar” sobre a cidade não é natural e fácil. As pessoas precisam voltar a se relacionar com a cidade, porque elas são a cidade. Só que isso não é mais tão claro. A gente vive nessa correria da garagem pro shopping, do carro pra casa e não nos perguntamos mais: qual é a cidade em que gostaríamos de viver? A partir disso, podemos ser propositivos e fazer movimentos que levem à construção dessa cidade.
Conector: Tu acha que essas questões de ocupações urbanas criativas estão sendo bem cobertas pelo pensamento acadêmico? Há linhas teóricas cobrindo isso e processando em tempo real? Ou há uma linhagem mais antiga de estudo?
Carla: Acredito que sim, que está sendo bem coberta, mas as transformações são muito mais rápidas do que o nível de produção acadêmica. Hoje, a evolução e maturidade do Ocupe e Abrace me levaria a uma outra análise e a uma outra proposta de projeto. Nós, acadêmicos, estudamos e registramos um momento/espaço-tempo, porém o projeto cresce, ou até muitas vezes morre mais rápido. Há movimentos como o DESIS – Design for Social Innovation and Sustainability, na área de design, que mapeiam essas iniciativas e a troca. Vejo muitos projetos na área de arquitetura, mapeando e propondo novas relações das pessoas com o espaço. A própria USP, através da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, tem iniciativas acadêmicas aliadas ao universo prático da cidade – como o projeto LabVerde, que traz o pensamento da permacultura ou da relação das pessoas com os rios. Inclusive, nós estamos tentando um termo de cooperação junto à Subprefeitura da Lapa, distrito do qual a Praça faz parte, pra implementação de um projeto estrutural pra praça feita por esse núcleo da FAU.
Conector: O teu estudo teve um impacto na forma como o Ocupe e Abrace age?
Carla: Pouco. Como o grupo estava nesse momento de formação, eu fiquei mais como uma observadora entendendo como as relações estavam sendo criadas. Em alguns momentos, como no workshop que propus com o grupo, apresentei minha visão sobre o coletivo e minha leitura do grupo. Mas no mestrado eu não faço uma proposta metodológica e sim uma análise e um levantamento de diretrizes projetuais. Foi sobre o que eu aprendi com o grupo, não sobre o que eles aprenderam comigo. Aos poucos eu fui trazendo minhas percepções, mas não tive tempo de apresentar todas as visões para eles ainda.
Conector: Qual tu acha que é a principal dificuldade para grupos que trabalham com ocupação criativa?
Carla: São diferentes níveis. O primeiro obstáculo são as próprias pessoas, elas entenderem que um novo tipo de convivência e ocupação é possível. Muita gente é negativa, descrente, e nos vê como baderneiros porque colocamos música e vida num espaço antes abandonado. Nosso propósito, por exemplo, sempre foi o da ocupação amorosa e inclusiva. Cada vez que vemos um senhor ou senhora de idade na praça é uma festa! Porque eles já viram esse espaço abandonado por muito tempo e também viram diversas tentativas frustadas de mudança. Então é um esforço constante de convencimento pras pessoas irem, participarem, ocuparem e se sentirem pertencentes àquele espaço. Dentro do próprio movimento, ainda são poucas pessoas atuando propositivamente e liderando iniciativas. O segundo obstáculo é de comunicação. Vivemos com a facilidade dos meios digitais, mas um projeto local precisa do contato mais pessoal e offline. É difícil manter isso e na praça não chegamos em um modelo ideal. Não há indicações sobre o grupo ou nosso propósito no local. Há um esforço dos participantes que moram mais próximo à praça de conversar com os vizinhos, falar da praça. Já usamos cartazes e carros de som. As atividades culturais, como a música, também atraem novos curiosos. O terceiro obstáculo é o burocrático. O formato “coletivo” ainda é muito novo e juridicamente ilegítimo como um tipo de sociedade organizada, diferente das associações de bairro. Isso complica inclusive como captar dinheiro e formas de viabilizar nossas propostas. Além disso, também estamos aprendendo a conviver com os órgãos públicos e seus processos.
Conector: E qual é o lado fácil?
Carla: A união dos grupos. Aqui em São Paulo está acontecendo uma troca muito grande entre os coletivos. O nosso coletivo já foi convidado pra apoiar outras iniciativas, assim como diversos grupos nos apoiam diretamente – promovendo atividades, melhorias, formas de viabilizar. Vejo cada vez mais a cidade como um laboratório de experimentação, e é lindo ver as conquistas de cada grupo.
Conector: Existe uma resistência ao uso de um pensamento sistemático como o Design Estratégico? Os grupos que tu mapeou tinham uma abordagem sistêmica e estratégica das suas ações ou eles estavam simplesmente respondendo organicamente a demandas coletivas?
Carla: Acho que depende muito, já são muitas iniciativas na cidade que estão exercitando novos formatos pra se tornarem sustentáveis. O Cidade Democrática, por exemplo, é uma iniciativa do Instituto Seva e venceu um edital, posteriormente ao projeto da Pompeia, pra apoiar o desenvolvimento de um plano pras cidades do Xingu. Eles são uma ONG. Sei que um outro coletivo se tornou uma empresa. Então, depende muito. Já está acontecendo uma “profissionalização” e um movimento de sustentabilidade do grupo e de seus membros. É interessante ver isso, porque o impacto das ações é tão positivo, que demanda mais tempo e novas iniciativas. Uma replicação de boas práticas, que necessita de um investimento de tempo e recurso das pessoas.
Conector: Existe uma proximidade dos grupos de ocupação criativa com os movimentos sociais ou são segmentos diferentes?
Carla: Isso está relacionado à minha resposta acima. Acho que sim, até por esse teste de formatos e possibilidades de atuação dos grupos de forma mais intensa. Também pela troca que há entre os grupos. Acho que a grande questão está no papel das marcas, que ainda não é muito claro ou visível. Acho que tem espaço para encontros e viabilidades por parte das marcas. Numa relação diferente do que existe hoje, menos de patrocínio e mais como uma instituição que pode gerar novas trocas na cidade.
Conector: E o teu estudo teve um impacto na tua vida, no jeito como tu te relaciona com a cidade onde tu mora?
Carla: Totalmente. Digo que encontrei meu ponto de equilíbrio com São Paulo. Cheguei ao ponto de escolher esse bairro pra viver quando precisei me mudar. Eu sempre sentia falta de um espaço mais social na minha vida, mas eu não sou muito próxima da ideia de voluntariado. Sou proativa e muito propositva. Gosto de gerar ideias. E o coletivo e a praça, como nosso espaço de experimentação, me permite isso. Além disso, a convivência com os espaços do bairro e com as pessoas é incrível. Já fui reconhecida como a moça da praça, passei a conhecer meus vizinhos, a ter contato com outros moradores e conhecer suas histórias de vida. E a ter um domingo em família, já que sempre tem atividades na praça nesse dia. Converso com senhores de 80 anos, com crianças, com casais, com donos de cachorro, com artistas, com outros grupos… E sinto mais vontade de explorar a região, valorizar os comerciantes daqui, vontade de cuidar do espaço. Já limpamos muito lixo da praça, já capinamos, já pintamos… me traz uma satisfação pensar que estou contribuindo para uma cidade melhor. Eu vivo em outra São Paulo, vivo uma cidade incrível e em transformação. E não vejo mais aquele espaço cinza, caótico e congestionado.
A questão da transparência no trato com as doações para campanhas eleitorais é um assunto que vem sendo repetidamente tratado pela imprensa mas que ainda tem um longo caminho a percorrer no que diz respeito à sua tradução para a cultura digital. A rigor, pela lei, os dados são públicos e estão disponíveis no site do TRE, mas na prática ainda dependem de jornalistas e ativistas para serem traduzidos em informação relevante e qualificada. Se ninguém mergulha nos dados e não traz à tona algumas conexões, eles são efetivamente um “bando de dados” e não um banco de dados como diz um ditado do mundo da pesquisa.
Utopicamente (e talvez ingenuamente), seria interessante pensar em um caminho no qual os dados de doação de campanha se apresentassem diretamente ao eleitor com sua relevância e conexões com o candidato, sem depender exclusivamente de jornalistas e ativistas. Há algumas semanas, o Plinio Zalewski deu uma ideia interessante: deveria ser obrigatório que as doações estivessem facilmente acessíveis na primeira página do site do candidato. Você entra no site, clica numa seção e vê quem doou quanto.
Se levarmos em consideração o avanço das tecnologias de big data, não seria maluco pensar numa evolução pra essa ideia. Por exemplo, uma barra no topo do site de cada candidato com o logotipo dos principais doadores privados. Essa barra poderia não ser apenas conectada ao sistema do TRE, mas também ao vasto mar de informações dos buscadores da internet e, a partir daí, determinar o tamanho do logotipo na barra de acordo com o volume doado e com as conexões políticas e econômicas entre empresa e políticos. Quanto maior o aporte do doador e sua intimidade com o candidato, maior o logotipo no site. Tudo muito simples e visual.
Claro que estou aqui especulando livremente tanto do ponto de vista tecnológico quanto político. São tantas forças e estruturas precisando ser revistas (inclusive a doação privada para campanhas) que ferramentas digitais podem parecer brinquedos perto da complexidade e opacidade do sistema político atual. Mas não vamos subestimar os brinquedos. Tanto a política quanto a vida em geral hoje são fortemente influenciadas por aparelhos e sistemas criados por nerds cujo trabalho era considerado até bem pouco tempo atrás brincadeira de criança ou ideia de ficção científica.
A depressão pós-Copa que muita gente relatou no início da semana tem um lado festivo e outro mais pesado. A versão festiva diz respeito ao fim do clima de micareta que tomou conta de algumas regiões de algumas cidades do país; a versão que deixa um gosto realmente amargo na boca são as consequências concretas da influência da Fifa e da Lei Geral da Copa sobre o ativismo social – materializado de forma flagrante e brutal na repressão a protestos no Rio no último domingo.
Ainda não me debrucei pra escrever mais longamente sobre o assunto porque, além de tempo, sinto que me falta mais conteúdo e experiência de primeira mão. Mas não quero deixar de compartilhar uma lista de links interessantes que surgiu nas minhas redes nos últimos dias e que acho que vale a leitura. Vamos lá:
* Protesto no Último Dia da Copa Recebido com Força Severamente Desproporcional, Prisões e Violência Policial – matéria no Rio On Watch.
* O braço forte da União: matéria da Publica sobre a ação coordenada da Advocacia Geral da União para coibir greves e protestos durante a Copa.
Pra quem acompanha a trajetória do Laerte, pode parecer redundante ficar ressaltando suas qualidades artísticas e sua importância humana na esfera pública. Mas cada entrevista que eu leio dela, cada trabalho que sai, eu me convenço de que é preciso sim martelar a qualidade da contribuição que ela vem dando pra cultura brasileira. Senão, é capaz de tomarmos por garantido uma participação que é na verdade muito única e especial.
Nunca fiz isso (me vestir de mulher) com tanta clareza. Tinha curiosidade e desejos de frequentar a feminilidade, mas não era uma coisa clara.” Outra das diferenças com as outras meninas, afirma Laerte, é ter sido aceite com muita rapidez. “Não só pela minha família, pelo meu entorno, meus colegas, meus empregadores, pelo meu público. Eu fico sentindo, por que é que eu não fiz isso antes? Quanto tempo eu perdi nisso? [risos] O que é um pensamento bobo porque a gente não perde tempo. Este é o meu tempo.”
Estamos vivendo um momento muito particular no país, com ânimos exaltados e muitos conceitos cristalizados sendo questionados, abertos, examinados, remontados. Às vezes, dá a impressão de que queremos, coletivamente, apressar esse processo, como se estivéssemos perdendo tempo se não virássemos o país do avesso. Mas uma coisa é a vontade difusa e intensa de resolver as coisas e outra completamente diferente é o tempo de andamento das nossas estruturas culturais e sociais, que não necessariamente respondem com a mesma velocidade a essa massa disforme de vontades.
Em meio a essa tensão, é bom que haja referências públicas como Laerte, pois ela aborda questões espinhosas com uma sensibilidade poética que amacia e torna próximo o que poderia ser tomado apenas como algo idiossincrático (que é o que acontece com muitos questionamentos no Brasl hoje). Laerte se articula com frescor e humanidade para falar de temas que em geral são discutidos ou com pavor preconceituoso ou com academicismo distante. Repetindo: não tomemos isso como algo garantido. É raro e precisa ser valorizado, destacado, reforçado.
A Nike é uma das marcas mais valiosas do mundo. Segundo o respeitado relatório anual da consultoria global Interbrands, somente a marca Nike (ou seja, seu conceito, sem contar os produtos, os empregados, as instalações) vale mais de 17 bilhões de dólares. Seus produtos são desejados por consumidores em todo o globo, seus concorrentes sofrem pra tentar chegar perto do significado que ela tem para eles e seus atletas compõem a elite do esporte – tando do ponto de vista atlético como financeiro. Ou seja, a Nike é um sucesso e não, definitivamente, precisa do meu pitaco.
Mas ainda assim eu senti que seria bacana dar uma sugestão. Porque, sei lá, eu fico preocupado com a Nike. Vai que daqui a pouco alguma coisa dá errado, ela perde público, aí muita gente vai também vai perder empregos e ficar triste. Não gosto de ver gente triste, então, resolvi ajudar: Nike, por que vocês não dão uma amaciada nesse slogan pra ampliar o seu público acolhendo pessoas mais preguiçosas e procrastinadoras?
Pois é. Eu sei que Just Do It é um chamado poderoso que resume a missão da Nike de “trazer inspiração e inovação para cada atleta no mundo”. E que a ideia dele é justamente tirar as pessoas da sua zona de conforto. Mas fico com a impressão de que vocês estão se afastando cada vez mais de uma mina de ouro, de uma quantidade imensa de gente que olha os comerciais da Nike e pensa “Ah tá bom. Então tá. Arrã, sei” ou então “Nossa, que cansaço.” Vocês não deveriam nos desprezar como fatia de mercado. Nós somos uma massa com muito potencial, que movimentou fortemente a cultura e a economia nos anos 90 com o nosso jeito despreocupado e indolente. As pessoas falam muito hoje do poder de ação da Geração Y, mas se esquecem que a Geração X, com seu jeito slacker, desorganizado e bagunçado, causou uma reviravolta na indústria fonográfica, influenciando toda a cultura pop com uma atitude de “oh well, whatever… nevermind!”. “Just do it” não diz nada a essa gente e vocês deveriam se ligar porque, como tudo dos anos 90 tá voltando, muito em breve a procrastinação e a preguiça também vão estar na moda de novo!
Bom, pra vocês se prepararem pra esse novo cenário, eu fiz alguns exercícios de slogan que podem apelar a esse interessantíssimo consumidor. No começo, achei que daria pra aproveitar alguma coisa do slogan atual de vocês. Afinal, ruim ele não é, né? Taí há tanto tempo, dando certo. Mas, quem sabe a gente adiciona um temperinho calmante nele? Ficaria assim:
Que quer dizer: ok, é legal “Just do it”, mas não o tempo todo né! Tem horas que tudo bem, vai lá e just do it! Mas alguns dias que você quer mais é don’t just do it, dar uma relaxada, sem aquela nóia de chegar em primeiro, de ser o primeiro, a não ser que seja o primeiro a ficar numa boa.
Mas aí eu fiz uma autocrítica e achei que o novo slogan ficaria meio remendado. E criei essa segunda opção:
Uma coisa assim mais lúdica, até meio lisérgica. Tipo: quer just do itzar? Ok, mas just do itzeie nos seus devaneios. Claro, aí a gente afasta o público anterior da Nike, esse pessoal mais ativado, mas uhuu-vamulá-galera!! Percebi essa fragilidade da minha tentativa e fiz uma nova, mais equilibrada:
Opa, acho que aí começamos a chegar em algo interessante! “Just think about it” tem ritmo, tem 66% do slogan anterior, resguarda a assertividade que caracteriza a Nike hoje. Mas eu aprendi com a Nike a não me satisfazer com pouco. Traí meus princípios de slacker e resolvi me puxar. Sentei pra assistir um filme e relaxar um pouco, mas não conseguia desligar desse trabalho. Ficava pensando, pensando, e me dei conta que o nome do filme que eu tava assistindo cairia perfeito pro novo slogan da Nike! Eu tava vendo Whatever Works do Woody Allen! E quem poderia personificar melhor essa nova fase da Nike do que o Woody Allen? Então, fui pro computador e escrevi isso:
A essa altura, minha cabeça estava agítadíssima, parecendo aqueles comerciais da Nike de futebol onde eles colocam todos os craques correndo feito loucos de um jeito que eles nem sempre jogam nas seleções. Senti que tava pertinho de algo definitivo e me lembrei que um dos princípios da redação é cortar, cortar, cortar sempre. E o que cortar desse slogan? Cortar o whatever? Nunca! Isso iria contra os princípios dos slackers. Opa! Cortar o works! Claro! Cortar o trabalho! Quem quer MAIS trabalho hoje em dia? Quem quer trabalho num slogan? Então ficou claro pra mim. Cortei o trabalho e ficou assim:
Aí está, Nike. Minha proposta de novo slogan pra vocês arrebanharem um novo público e pararem de depender desses obcecados por vitória e liderança que, vamos combinar, quase nunca vencem mesmo. Aproveitem que eu não sou da Geração Y. Se fosse, ia cobrar uns 10 milhões por esse slogan e querer me tornar sócio. Como eu sou da Geração X, eu dou de graça e ainda vou desdenhar vocês porque são uma multinacional. Whatever.
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Mas, bom, se nada disso convenceu a Nike a trocar seu slogan, ao menos quem sabe eles podiam traduzir o Just Do It pra português? Nesse caso, eu também tenho uma sugestão:
Tudo bem: no fim das contas está tendo Copa, ela está divertida, cheia de jogos interessantes e com muitos gols. Eu fui no Coreia x Argélia, curti o clima da Copa (apesar do ar shopping center), adorei dar uma volta pela Cidade Baixa coalhada de gringos. Mas todo lado A tem seu lado B e, apesar da repercussão desproporcional, não faltam exemplos dos desmandos públicos e privados que estão acontecendo na paralela. Vai aqui, então, uma pequena coletânea de artigos, matérias e vídeos com o lado B da Copa. A escolha não é científica, foi um tanto quanto aleatória a partir do que chegou a mim nas últimas semanas via redes sociais. Mas certamente é representativa.
* Pra começar, tem a prisão abitrária do Everton em São Paulo, num tipo de ação que tem sido escandalosamente sistemática:
Sobre isso, tem mais um relato por escrito no site da C.O.P.A., que aliás faz um rico apanhado das ações violentas e repressivas a movimentos sociais durante a Copa.
* No tema “estádio e arenas”, é obrigatório acompanhar o trabalho da Pública, Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo. Três matérias pra começar: Tem Dinheiro Publico, Sim Senhor (foram 4,8 bilhões de governos estaduais para a Copa); As Quatro Irmãs (que cobre a trajetória das quatro grandes empreiteiras do Brasil); e “Eles Estão Roubando Vocês”, entrevista com o jornalista Andrew Jennings, que investiga a Fifa há muito tempo.
Feita a compilação, meus votos são que o maior número possível de pessoas consiga suportar a ambiguidade de curtir a Copa sem desligar o espírito crítico e investigativo. Não é fácil, mas é possível e necessário.