As peças que faltam nas Smart Cities e na Indústria 4.0

_DSC0005-0

Ontem à noite, o antropólogo e etnógrafo Massimo Canevacci esteve na Unisinos, em São Leopoldo, para falar sobre “Smart cities, cultura digital e renovação política. Contradições e possibilidades da revolução 4.0”. Mas quem estava esperando mais uma palestra mostrando os benefícios de se espalhar sensores pela cidade para gerenciá-la de forma mais eficiente, com inteligência artificial e visualização de dados, certamente se surpreendeu. Questões menos óbvias, mas claramente fundamentais, foram propostas por Canevacci para enriquecer o conceito de Smart Cities buscando evitar que a gente cometa os mesmos erros que projetistas e pensadores do passado recente.

Canevacci começou traçando uma linha histórica e artística do conceito de ubiquidade, essa ideia de se estar ao mesmo tempo em todos os lugares em nenhum, essa desterritorialização da nossa identidade que é muito forte na cultura digital mas que, segundo ele, já começou na era do rádio. Italiano, Canevacci citou o exemplo do rádio durante o facismo e o nazismo, que era considerada “a voz do Fuhrer” em toda a Alemanha ou do Duce na Itália, uma presença espectral que estava simultaneamente em todos os lugares em nenhum – como todo o poder simbólico e concreto que isso tem. A partir daí, lembrou os estudos de Adorno sobre a ubiquidade do rádio e citou David Lynch, David Cronenberg, Black Mirror, Nam June Paik e Tran Ba Vang como exemplos de artistas e obras que compreenderam a identidade ubíqua das pessoas antes mesmo da academia estudá-la em toda sua riqueza.

Mas o que a identidade ubíqua tem a ver com as Smart Cities e a Indústria 4.0? Assim como a cibernética foi constituída como campo tendo à mão ideias das teorias sociais, Canevacci propõe que é preciso entender muito bem essa fragmentação da identidade das pessoas (e dos objetos, que também passam a estar em todos os lugares e em nenhum com a Internet das Coisas) para não acabarmos gerando mais problemas do que soluções com toda a estrutura tecnológica que está sendo pensada e projetada para a integração de cidades e objetos com as redes. Para ele, o conceito e os projetos de Smart Cities ainda são muito debatido na base do “sensores + dados + inteligência artificial = soluções para todos nossos problemas” (o que Evgene Morozov chama acidamente de “solucionismo”) e sugere que é importante & urgente olharmos para isso pensando melhor o lugar das pessoas e de suas questões subjetivas nessa rede. Isso, sob pena de repetirmos o erro de querer resolver complexos desafios humanos apenas com a tecnologia. A audiência de Mark Zuckerberg com o Senado americano, que aconteceu algumas horas antes da fala de Canevacci, é um exemplo vivo do que pode acontecer quando a tecnologia é projetada sem um viés cultural, ético, social e humano.

Canevacci também ressaltou que é preciso revisar e renovar certos conceitos teóricos para dar conta dos desafios contemporâneos no âmbito das Smart Cities e da Revolução 4.0. Sua própria pesquisa está buscando expandir conceitos do marxismo (do fetiche da mercadoria ao metafetichismo) e da teoría crítica (da personalidade autoritária para a personalidade digital autoritária) para ajudar a construir alternativas viáveis de modos de pensar e de viver que os projetos revolucionário-tecnicista (por obsessão com o futuro tecnológico) e revolucionário-humanista (por obsessão com fórmulas do passado) não estão conseguindo. Ele perguntou literalmente: “qual é a proposta da esquerda para a Indústria 4.0? Qual é a proposta da FIESP para a Indústria 4.0?” E aproveitou para conclamar os interessados a “ensinar a esquerda a pensar essas questões e a se comunicar” e a reformular a universidade rumo a uma proposta mais transdisciplinar e menos refém de suas caixinhas clássicas.

Pois, ao vivo, em pouco menos de 2 horas, Canevacci mostrou qual é a vantagem de sermos transdisciplinares e não estarmos fechados em nenhuma caixinha.

***

Em um momento muito perspicaz e bonito, Canevacci lembrou que foi a ubiquidade de Marielle Franco que tornou ela uma ameaça ao establishment político: Marielle não pertencia a um lugar só; estava na favela e fora dela, em todos os lugares e em nenhum. Se estivesse só dentro ou só fora, disse o professor, ela não seria um “problema” e não teria sido assassinada. Tragicamente, a morte de Marielle a tornou ainda mais ubíqua – ou assim esperamos.

***

A palestra de Canevacci ontem faz parte de um ciclo sobre Revolução 4.0 do Instituto Humanitas.

No site do Instituto Humanitas tem diversas entrevistas com ele.

***

Foto: Rivista di Scienze Social

Sobre o fim do OEsquema

OEsquema_2008-2015

O Sutra do Diamante, um dos mais importantes discursos do Buda, diz, a certa altura:

“Todos os fenômenos
São como um sonho, uma ilusão,
uma bolha, uma sombra
como o orvalho ou um raio
Assim devemos percebê-los”

O OEsquema foi um dos sonhos, uma das ilusões, uma das bolhas, uma das sombras, uma das gotas de orvalho, um dos raios mais bacanas dos quais participei na minha vida. Quando o Matias (Trabalho Sujo) e o Bruno (Urbe) me convidaram, em 2008, para dividirmos o servidor e um layout junto com o Arnaldo (Mau Humor), aceitei na hora. Depois de 3 anos de um Conector solitário no Blogger, foi uma alegria encontrar parceiros com quem podia não apenas ratear despesas mas também conectar ideias. Mesmo que em paralelo, sem uma proposta formal, sem uma linha editorial, sem reuniões de pauta, pouco a pouco fomos influenciando e complementando uns aos outros de maneira natural e crescente.

Com o Matias, eu já vinha interagindo desde os anos 90: estivemos juntos na Poplist (uma frutífera lista de emails de músicos, produtores e jornalistas de cultura pop), minha banda foi resenhada por ele no Trabalho Sujo de papel (uma coluna cultural no Diário do Povo de Campinas), publiquei textos no site dele, o 1999 (um site que durou um ano) e também na revista de cultura digital que ele editou (a Play, da editora Conrad). O Bruno eu já lia no Urbe, mas fui conhecer pessoalmente só depois do OEsquema já estar funcionando, numa passagem relâmpago por Londres onde ele me arrumou um sanduíche e um ingresso pra ver o Radiohead no Victoria Park. O Arnaldo, de quem também já era leitor e fã, fui conhecer anos depois, no lançamento de um microdocumentário sobre coletivos do qual o OE participava – quer coisa mais “era digital” do que conhecer seu sócio desse jeito?

Em 2010, vieram os outros blogueiros e nasceu nossa capa com uma característica básica: todo o conteúdo do http://www.oesquema.com.br sempre foi decidido pelos blogueiros integrantes. Nunca houve filtro, editor e nem editoria. O OEsquema, desde sempre, manteve coletivamente o espírito de fluxo de consciência da origem dos blogs. Nossa capa era um apanhado orgânico do que vinha rolando na cultura pop do jeito como a cultura pop está sendo feita – sem rótulos, sem retrancas, sem categorias estanques. O OEsquema era um blog de blogs.

Em 2013, o pico de audiência com a cobertura coletiva das Jornadas de Junho. Em 2014, a tentativa de profissionalizar o site, que acabou não dando certo porque nenhum de nós, dos sócios, poderia puxar o carro da profissionalização e, que se saiba, fluxo de consciência não é bom gestor de negócios. Decidimos pelo fim e voltamos cada um para seu endereço, com as malas cheias de experiências incríveis e amizades valiosas.

O fluxo continua. Eu vou estar por aqui no Conector. Os endereços dos outros quase 30 blogs do OEsquema vão estar em breve no http://www.oesquema.com.br.

Até mais.

O Círculo: talvez o livro mais importante de 2014

The-Cirlce

O ano já se encaminha para o final, mas ainda dá tempo: O Círculo, romance de Dave Eggers que narra a ascensão de uma funcionária exemplar na empresa de tecnologia mais criativa do mundo, pode ser lido sem pressa em poucos dias, digamos, entre o Natal e o Ano Novo. Não que sua atualidade tenha data de validade tão curta ( o livro é de 2013!), mas defendo que este livro, mesmo com seus pequenos defeitos literários, talvez seja um importante marco na cultura contemporânea. O que Eggers fez não é pouco – ele escreveu a fábula definitiva que encerra um período de ingenuidade sobre o que o universo simbólico do Vale do Silício tem a oferecer para o mundo. Quanto antes passarmos isso a limpo, melhor.

A história de Mae Holland, personagem principal do romance, é facilmente reconhecível mesmo por quem não acompanha o noticiário especializado de tecnologia. Recém formada e enfiada em uma repartição pública do interior da Califórnia, Mae é resgatada de sua vidinha ordinária por uma ex-colega de faculdade que lhe devia alguma fidelidade. A dívida é paga com juros. Annie, a amiga socialmente bem posicionada de Mae, faz parte da elite do Círculo, o Google do universo criado por Eggers, que revolucionou a vida online unificando todos os perfis e identidades virtuais no TruYou, “uma conta, uma identidade, uma senha, um sistema de pagamento por pessoa” no qual se usa “seu nome verdadeiro, que está vinculado a seus cartões de crédito, seu banco”, ou seja, “um botão para o resto da sua vida online”. A sede do Círculo, situado em uma cidade fictícia próxima a San Francisco, é tudo aquilo que Mae – e boa parte dos jovens hoje – quer de um ambiente de trabalho: uma Shangri-la moderna, com calçadas pavimentadas com pedras contendo mensagens inspiradoras, comida orgânica gratuita, shows e espetáculos diários com grandes artistas no refeitório, festas temáticas semanais, um hotel interno para quem não quer dirigir de volta pra casa depois do serão, medicina preventiva baseada em sensores intracorporais e big data, além de uma demografia clara no recrutamento (só jovens bacanas e interessantes entram para O Círculo). É nessa empresa, que Eggers parece ter construído a partir de uma pesquisa sobre “onde as pessoas de 2014 gostariam de trabalhar”, que Annie arruma uma vaga para sua ex-colega da graduação.

02616_gg
[o autor]

Mae começa por baixo, na área de atendimento ao cliente, e primeiro estranha a intensidade social dos funcionários do Círculo, que vivem o campus como se fosse o único lugar do mundo onde vale a pena estar. Mas, rapidamente, ela não só é seduzida pela vida no Círculo como engata uma trajetória de protagonismo pagando alguns preços que Eggers – mas não Mae – considera caros. Sua privacidade, sua relação com os pais, com a amiga Annie e com qualquer coisa que não seja a filosofa essencial dos Três Sábios, o board que preside O Círculo, tudo vai sendo deixado para trás em nome de um avanço radical em busca da transparência digital definitiva. O livro se desenrola na sua dupla função, de sátira e thriller. A meio caminho do final, um forte suspense tempera a divertidíssima crônica de costumes que cobre praticamente todos os exageros que viemos cometendo nos últimos 15 anos no uso indiscriminado e experimental do que quer que a indústria da tecnologia sacuda na nossa cara. Os ruídos de comunicação gerados pelo contato virtual, a carência emocional convertida dados de audiência pessoal, a autoexposição que busca soterrar angústias profundas, o reality show que pulou da TV pras nossas timelines – O Círculo de Eggers parece mais um catálogo das pequenas insanidades cotidianas da hipermodernidade.

Apesar de algumas forçadas de barra narrativas (bem sublinhadas por essa resenha do NYT) e da tradução para o português que não tem como dar conta da mania dos personagens de falarem discursando como se estivessem no TED Talks (algo que flui melhor em inglês), O Círculo tem o gigantesco mérito de expandir para uma audiência mais mainstream linhas de discussão que até então viviam restritas aos textos de especialistas como Jaron Lanier, Evgene Morozov e Douglas Rushkoff. O poder de influência das empresas de tecnologia sobre a sociedade via ferramentas e códigos culturais, sua tendência monopolista disfarçada de simpatia é quase amor, sua relação ambígua com Governos e políticas públicas, seu impulso de pedir transparência aos usuários enquanto trabalham sob uma redoma frequentemente opaca, nada disso interessa ao público médio na forma de ensaios político-culturais. Nesse sentido, O Círculo funciona como um cavalo de tróia – você está lá, se divertindo com as patuscadas de Mae Holland na prosa quase televisiva de Eggers e, quando percebe, sua mente foi inoculada com uma série de questionamentos absolutamente sérios e relevantes sobre onde fica o limite entre a disrupção tecnológica útil e a demência capitalista-digital que mascara emoções destrutivas com design minimalista e responsivo.

the-circle

Antes de escrever esse post, me perguntei se ele seria relevante no contexto brasileiro, uma vez que a história de O Círculo depende em parte de conhecermos um pouco do funcionamento do Vale do Silício. Mas então lembrei que há pouco tivemos uma novela das sete com a mesma temática; que revistas mainstream como Época Negócios, Exame PME e Veja tem destilado essa filosofia em suas páginas há anos; que a morte de Steve Jobs comoveu Luciana Gimenez; e que mesmo aqui, em Porto Alegre, empresários de todos os portes e idades parecem querer emular o jeito de fazer negócios (e de se exibir) de San Francisco. Onde houver uma empresa que pensou em colocar (ou colocou) um videogame na área do cafezinho pra se sentir mais moderna, a leitura de O Círculo se faz necessária.

Conforme escrevi nos posts Softer, Worser, Slower, Weaker e A Perigosa Cultura do Como Mudar o Mundo e Sua Vida, estamos passando por um momento de deslumbramento com práticas empresariais supostamente modernas mas que, muitas vezes, tem por trás as mesmas intenções e valores de sempre – crescer e conquistar território. O fato de que essas intenções hoje são mais facilmente disfarçadas com propósitos “sociais” e slogans “inspiradores” é algo que deveria nos incentivar a ter sempre um pé atrás e uma sobrancelha levantada com empreendedores hiperbólicos. Só assim descobrimos, por exemplo, que a narrativa da startup que nasce em uma garagem no Vale do Silício é, em geral, mais mito do que de verdade. E que muitos empresários da era digital podem ser considerados, como escreveu Fernand Alphen, “robber Barons modernos”, alcunha historicamente reservada a latifundiários inescrupulosos na Europa medieval ou a industriais vorazes nos Estados Unidos do século XIX. Só assim mantemos uma atitude saudável de nos perguntarmos, como fez a Bia Granja, se não devemos deixar de usar um app super popular e útil (e com uma aura suuuper moderna) devido aos valores questionáveis de seus criadores.

O Círculo é o livro que faltava pra condensar todas essas suspeitas em uma obra de apelop pop e que você pode levar embaixo do braço lembrando que uma empresa mercantilista e messiânica não deixa de ser mercantilista e messiânica só porque sua sede parece um café do Brooklyn e seu discurso corporativo soa como um vídeo de autoajuda. Tudo bem se você quer conquistar o mundo com suas ideias, seu dinheiro e sua energia. Mas, como bem resume um ditado popular, não vem me contar que eu não sou dinheiro.

***

coup1

Outra coisa: de certa forma, achei que O Círculo é a versão século XXI de Microservos, romance de 1995 escrito por Douglas Coupland (o mesmo de Geração X). Microservos conta a história de um grupo de nerds hardcore com imensos talentos (e dificuldades de relacionamento do mesmo tamanho) que deixam a Microsoft para embarcar em um projeto semi-autoral. É bem mais emocional e poético do que O Círculo (ao estilo de Coupland), mas vale comparar os dois pra sentir o papel da tecnologia e seus personagens no meio da década de 90 (ainda marginais e desajeitados) e quase 20 anos depois (no centrão da cultura pop).

Microservos saiu no Brasil na época pela Nova Fronteira com uma capa idêntica à versão original (aí de cima) e é super difícil de achar, mesmo em sebos. Eu ainda tenho o meu. 🙂

Imagens: Be Nourished e Busty Teacher.

Jam: uma ferramenta de processo criativo simples e visual

JAMBOARD

Quem não é da área criativa em comunicação, geralmente acha que a parte mais complicada desse trabalho é “ter ideias”. Já quem é do ramo sabe: hoje em dia, com tanta informação e tantas ferramentas à mão, qualquer um tem ideias. O que não falta é gente chegando em reunião com ideias! O problema real é gerar ideias que resolvam mesmo os briefings e de maneira sistemática, o que é o oposto de ter espasmos de criatividade atirando para qualquer lado, coisa que qualquer um pode fazer de vez em quando.

Foi pra resolver isso que eu e o Zé Pedro Paz da DZ Estúdio criamos a JAM – Processo Criativo Smart/Simple. A JAM é uma ferramenta simples e visual desenvolvida para sistematizar a criação de ações e campanhas da DZ. Na DZ, assim como em muitas agências digitais, criação é processo e não necessariamente um departamento. Logo, envolve pessoas de áreas diferentes que nem sempre tem as manhas do processo criativo. Daí, a necessidade de utilizarmos um método de fácil compreensão e aplicação que organize as informações de entrada, facilite o brainstorm e depois consolide o resultado do brain.

A JAM vem sendo usada há mais de um ano na DZ e ajudou a desenvolver uma série de projetos bacanas. Agora, resolvemos abrir a JAM e liberá-la para o uso de quem quiser na esperança de receber críticas e sugestões, e também para ajudar outras empresas e pessoas que estejam, como estivemos, com obstáculos em processos criativos que envolvem profissionais de backgrounds muito diferentes.

Interessou? A JAM está explicadinha aqui nessa página, inclusive com os boards visuais que usamos nas nossas jams. Use e escreva pra nós pra fazer suas considerações. Queremos daqui um tempo ter uma JAM 2.0 ainda melhor e mais útil.

***

Atenção: na próxima quarta, dia 19 de novembro, eu e o Zé vamos dar um workshop sobre como usar a JAM na Semana da Comunicação da ARP. Mais informações aqui.

Por que o Facebook é a internet das eleições 2014

 

10622918_904295672931531_3754106560924288733_n

E quem diria: a rede social que passou boa parte do ano tendo sua decadência prevista por pesquisas e especialistas se tornou a grande estrela digital das eleições de 2014, mesmo antes do segundo turno terminar. Com cerca de 90 milhões de usuários ativos, dos quais 59 milhões acessando-o diariamente (dados de agosto), o Facebook vem combinando grandes números de audiência na internet com a aderência de todas as correntes políticas e classes sociais, além de permitir a discussão política em diferentes níveis de profundidade. Muita gente ama, muita gente o odeia o Facebook, mas todo mundo declara seu amor e ódio eleitoral postando no próprio.

Em 2010,  nas últimas eleições presidenciais, éramos menos de 9 milhões de brasileiros no Facebook e 9 milhões no Twitter. O Orkut era o terceiro site mais acessado do país e contava com 30 milhões de usuários, mas seu formato mais tosquinho e a população menos conectada e menos móvel impediam um fluxo tão orgânico e pulsante de conteúdos como temos hoje. Além do mais, os Protestos de Junho de 2013 ainda não tinham acontecido e política não era uma pauta tão quente como é agora (embora eu tenha a impressão que no Facebook TODAS as pautas tem pegado fogo). Na verdade, vivemos em um país tão diferente de 2010 em termos de cultura digital que é quase impossível fazer comparações.

Por um lado, o Facebook foi beneficiado pelo contexto de 2014: nos últimos dois anos, pudemos começar a usar a palavra “popular” para falar de smartphones, internet móvel e vídeo na internet. Nos últimos 15 meses, tivemos dois grandes eventos nos quais testamos intensamente nossas redes pessoais no que diz respeito a discussões nacionais – os já citados Protestos de Junho e, ligado a isso, a Copa do Mundo. Mas também há os predicados do próprio Facebook, sendo que o mais importante de todos é que ele combina os principais formatos de postagens e compartilhamentos em uma única plataforma: se você quer condensar sua opinião política em 140 caracteres, você pode; se você quer se estender, escrevendo um post de 2.000 caracteres manda; se você se contenta em compartilhar um card com um meme, tá valendo; vídeos oficiais do seu candidato são aceitos; vídeos não oficiais também são válidos;  selfie na urna? Tudo bem! O Facebook não tem preconceitos e aceita todo mundo que queira se expressar do jeito que bem entender – desde, claro, que esteja demograficamente dentro da população mininamente conectada do país.

Em termos de correntes política, também parece que ninguém teve muita escolha a não ser abraçar o Facebook para chegar ao eleitorado. Os sites oficiais dos candidatos, seus canais de YouTube, os blogs dos correligionários e os veículos à esquerda ou à direita, todos dependeram do Facebook para criar ou ampliar sua audiência. Mesmo as fanpages dos candidatos também não sobreviveriam de suas funções oficiais: um vez que a lei eleitoral proíbe a compra de mídia por parte de políticos e partidos em época de eleição, está sendo preciso contar com uma militância bem construída e versada na rede, o que significa ter capacidade de disseminação no Facebook. Partidos mais organizados e com militância conectada não garantem nada, mas levam vantagem ao menos ocupando o encanamento da internet com seus conteúdos.

E o Twitter? É claro que o Twitter retomou este ano sua importância, confirmando a vocação para segunda tela de eventos ao vivo pela TV e assim turbinando os debates nacionais. Eu, particularmente, gosto mais do poder de síntese e da qualidade do material que circula pelo Twitter. Mas é impossível negar: em se tratando de internet, a festa da democracia esse ano foi marcada, divulgada e confirmada via Facebook.

A perigosa cultura narrativa do "Como Mudar o Mundo e Sua Vida"

14327861786_dbba6451e8_b (1)

Mês passado, o Gustavo Gitti publicou no Papo de Homem um texto criticando os excessos do que poderíamos chamar de “cultura do aprimoramento”. Disse ele:

“Estamos na era do aprimoramento pessoal. ‘Como’ e ‘melhorar’ são os novos mantras: como melhorar a alimentação, como melhorar o trabalho, como melhorar o relacionamento… Quando aparece a palavra ‘rim’, é porque o rim não está funcionando bem. Quando se fala muito em paz, é porque não há paz. Se cada vez mais ouvimos sobre desenvolvimento humano, felicidade e transformação, talvez seja por que nunca estivemos tão confusos em relação ao que isso realmente significa.”

O post envereda por questões internas ao ser humano sobre o que de fato significa transformação, buscando falar do que vai além das aparências externas. Sem entrar em questões semânticas absolutas, ele estabelece, para efeito de diálogo, uma distinção entre mudança e transformação:

“O processo da mudança funciona como uma constante busca por novas experiências. Quando alguém diz ‘Mudei’ na maioria das vezes quer dizer: ‘Troquei de experiência’. O processo de transformação trabalha com toda e qualquer experiência, com cada vez menos necessidade de buscar por novas experiências ou de alterá-las externamente.”

Mudança seria, então, uma “revolução” mais aparente e também mais superficial. A transformação, por outro lado, exigiria um auto-entendimento mais refinado e menos dependente de manifestações externas. Mudança se anuncia, transformação se empreende. Mudança rende poemas, canções, videocases. Transformações rendem seu próprio resultado, que muitas vezes vem de um processo longo, demorado e pouco cinematográfico. Às vezes, inclusive, rende apenas seu próprio processo. Mas o fato de, hoje, a mudança ser muito mais popular do que a transformação não deve ser debitado unicamente na conta da dificuldade inerente das transformações. A cultura contemporânea tem celebrado e estimulado intensamente a ideia de mudança – rápida, formulaica e vibrante, já que a transformação não rende boas histórias se contada honestamente, pois demora demais pra acontecer e nem sempre gera fogos de artifício.

Segue Gitti:

“Não é fácil detectar o limite do processo de mudança em uma cultura que promove tantas soluções desse tipo. O site do TED é uma boa amostra desse zeitgeist atual. As palestras, se vistas em conjunto, parecem comunicar uma mensagem assim: Você quer se transformar? Basta saber disso, estudar aquela pesquisa, ler tal livro, não esquecer daquilo, começar a dormir mais, usar esse novo modelo de pensamento, se exercitar assim, comer isso, fazer tal coisa, implementar tal hábito…”

14929399639_67013a4742_b

Os vídeos das conferências TED Talks, que condensam ideias complexas e impactantes de cientistas, intelectuais, artistas e empreendedores em no máximo 18 minutos, são um dos vetores culturais mais poderosos da última década na internet. O site do TED tem cerca de 1500 vídeos que já foram assistidos mais de um bilhão de vezes. A estética TED Talks de apresentar ideias influenciou o mundo corporativo, o universo acadêmico e toda uma geração de jovens empreendedores (bem como os Muppets). Graças ao TED, para milhões de pessoas, um projeto de “mudar” ou de “mudar o mundo” é algo que precisa caber em 18 minutos além de ser necessariamente contado de maneira empolgante. Que medo.

Embora eu tenha assistido com gosto muitos vídeos do TED e reconheça o poder e as virtudes da síntese e do storytelling na vida prática, quando se fala de transformação real e profunda, penso que é temeroso acostumar-se unicamente com um paradigma baseado em “eficiência de plateia”. E é visível, ao menos nos meios que frequento e que acompanho, a confusão gerada pela estética TED Talks nesse sentido. Há os que acham que o resultado da transformação deve caber numa palestra ou num vídeo; há os que acham que a palestra/vídeo É o resultado da transformação; e há, o mais perigoso, os que não reconhecem o valor das pessoas que transformam e que geram transformação mas cuja fala não se alinha com a estética TED Talks. Que medo, de novo…

Semana passada, o site Motherboard aproveitou o buzz em torno da nova rede social Ello para destrinchar a história meteórica da Diaspora. Assim como o Ello, a Diaspora surgiu como uma alternativa ao Facebook, mais livre, mais privada e supostamente embebida em ideais mais nobres. Não sabemos o que será da Ello, mas a Diaspora naufragou devido a uma mistura de obstáculos internos e de contexto econômico-cultural. Isso não impediu que seus criadores fossem assediados pela mídia e erguidos em pedestais cedo demais, muito antes que suas ideias pudessem se provar eficientes e realmente transformadoras. A narrativa de ascensão e queda da Diaspora, dramática porque envolve até mesmo um suicídio, é fruto, em parte, da cultura TED Talks – era esperado por todos os lados que eles condensassem um amadurecimento de ideia aceleradamente. Live fast, die young. O ditado cinquentão ainda faz sentido na era digital.

Narrativas de transformação dificilmente cabem em videocases ou posts, mas podem dar livros interessantes. Procure a trilogia de Fernando Gabeira, por exemplo. Em O que é isso, Companheiro?,  O Crepúsculo do Macho e Entradas e Bandeiras o ex-guerrilheiro conta a longa, batalhada e dolorosa transformação pela qual passou antes, durante e depois da ditadura. Só não espere lições de vida ou listas de atitudes positivas. Outra boa dica é Jovens de um novo tempo, despertai onde o Nobel de Literatura Kenzaburo Oe tenta “explicar todas as coisas do mundo” a seu filho deficiente e se perde nos próprios devaneios e dificuldades tentando triangular a relação com o menino, seu projeto literário e seu amor pela poesia de William Blake. Impossível condensar essa história de transformação em um post de Facebook. Se ainda não estiver convencido, leia Depois do Êxtase, Lave a Roupa Suja, coletânea de centenas de entrevistas do professor de meditação americano Jack Kornfield com monges, lamas, padres, freiras e outros mestres espirituais sobre o lado B da vida espiritual. Acho que nenhum deles ali palestrou no TED.

Em resumo, é bacana e bem vindo que exista no ar essa energia que tende à mudança, à busca de novas perspectivas, de alargamento de horizontes. Mas ela é melhor acompanhada por uma dose certa de ceticismo, daquele tipo que não desestimula a busca por transformação mas que também não aceita tratar de um assunto tão importante com uma abordagem de programa de auditório hipster. O padre jesuíta John Culkin disse no século passado que “Moldamos nossas ferramentas e nossas ferramentas nos moldam”. Neste século, quando a comunicação e a linguagem são forças dominantes mais do que o trabalho, poderíamos dizer: “Moldamos nossas narrativas e nossas narrativas nos moldam”. É algo no qual vale a pena prestar muita atenção.

***

Na verdade, se formos um pouquinho mais fundo, vamos encontrar essa narrativa incorporada fortemente à cultura americana, que continua sendo uma das grandes influências da cultura global, não importa o que falem sobre a Ásia ou a América Latina. No dia 11 de setembro, ironicamente,  o The New York Times publicou em sua revista de varieadades um longo ensaio chamado “A Morte da Idade Adulta na Cultura Americana”. Nele, o crítico de cinema A.O.  Scott traça uma linha que começa na literatura do século XIX do seu país e chega até os seriados e as sagas literárias atuais ressaltando, entre outras coisas, sua ode ao escapismo. E cita Love and Death in The American Novel, escrito na década de 60 pela crítica literária Leslie Fiedler, que diz: “Um dos fatores que determina o tema e forma de nossos maiores livros é a estratégia de evasão, essa retirada para a natureza e para a infância que faz nossa literatura (e nossa vida!) tão encantadoramente e irritantemente masculina (boyish).” Não é difícil associar esse tipo de mentalidade com a cultura TED Talks / Vale do Silício.

***

Se você gostou desse texto, talvez curta meus próprios relatos de mudança:

– A busca pelo sentido no trabalho e as videocassetadas.

– Por uma vida mais ordinária.

***

Fotos: Raumrot

Três notas rápidas sobre cultura pop e cultura digital

14189303799_e984709bd4_b

1) Corrijam-me se eu estiver ruim de memória, mas suspeito que o comercial da F-1 da Globo usando “Taca-le pau” é o primeiro grande registro de um bordão que migra DA internet PARA a TV. Não é questão de brincar de disputinha TV x Internet, mas sim mais um sintoma interessante sobre a diversidade de fontes de cultura pop que a internet trouxe pra nossa realidade. E isso, lembrando, que ainda tem mais ou menos metade da população brasileira pra se conectar ainda…

2) A ânsia em atender a suposta vontade das pessoas de criarem seus caminhos de conteúdo está levando empresas de conteúdo digital (mídia e publicidade) a abrirem mão da responsabilidade de criar hierarquias de informação. Isso está se refletindo também na mídia impressa e eletrônica. O resultado não tem sido democracia, mas bagunça.

3) Existe uma ideia no ar de que as pessoas sempre pagam por aquilo que lhes é valor. No digital, as pessoas pagam pelo que não conseguem de graça, seja por preguiça ou por desconhecimento técnico pra chegar lá. O valor no digital na maior parte das vezes não está no produto/conteúdo, mas no acesso (o que é um tanto quanto deprimente para quem cria produtos e conteúdos).

***

Foto: Raumrot.

 

 

Sabedoria na Era da Informação: um ensaio visual

Captura de tela 2014-09-14 23.05.31

Já não é mais nenhuma novidade destacar que estamos, hoje, soterrados de informação e com grande dificuldade de processar tudo a que temos acesso. Mas, ao mesmo tempo, é justamente essa situação sufocante que torna válido chover no molhado quando o assunto é “infotoxicação”. O vídeo abaixo, um ensaio visual escrito pela Maria Popova do Brainpickings e posto em movimento pelo animador Drew Christie, é mais um lembrete da necessidade de olharmos com mais atenção para o cenário de mídia em que vivemos e a busca por novas formas de construir sentido tanto no âmbito individual quanto coletivo.

Abaixo do vídeo vai a transcrição do texto, que eu traduzi pra vocês.

“Vivemos em um mundo repleto de informação, mas parece que estamos enfrentando uma crescente escassez de sabedoria. E, o que é pior, confundindo as duas coisas. Acreditamos que ter acesso a mais informação produz mais conhecimento, o que resulta em mais sabedoria. Mas, se há algo claro, é que o oposto é verdadeiro – mais e mais informação sem o contexto e interpretação adequados só atrapalha a nossa compreensão de mundo em vez de enriquecê-la.

Esta avalanche de informação facilmente disponível também criou um ambiente em que um dos piores pecados sociais é parecer desinformado. Em nossa cultura, é extremamente constrangedor não ter uma opinião sobre algo. De forma que, para parecermos informados, construímos nossos assim chamados pareceres às pressas, com base em pedaços fragmentados de informações e impressões superficiais, em vez de basear-nos em uma compreensão autêntica.

“Conhecimento”, Emerson escreveu: “é o saber que não podemos saber.”

Para capturar a importância disso, primeiro é importante definirmos esses conceitos como uma escada de entendimento.

Na base da escada está uma unidade de informação, que simplesmente nos conta algum fato básico sobre o mundo. Acima disso vem o conhecimento – a compreensão de como os diferentes pedaços de informação se encaixam para revelar algumas verdades sobre o mundo. Conhecimento depende de um ato de correlação e interpretação. No topo está a sabedoria, que tem um componente moral – é a aplicação da informação que vale a pena lembrar e do conhecimento que é importante para a compreensão não só de como o mundo funciona, mas também da forma como ele deve funcionar. E isso requer uma estrutura moral do que deve e não deve importar, bem como um ideal do mundo em seu mais alto potencial.

É por isso que a figura do contador de histórias é ainda mais urgente e valiosa

Um grande contador de histórias – seja um jornalista ou editor ou diretor ou curador – ajuda as pessoas a descobrirem não só o que importa no mundo, mas também por que aquilo é importante. Um grande contador de histórias dança escada do conhecimento acima a partir de informações passando pelo conhecimento até chegar na sabedoria. Através de símbolos, metáforas e de associações, o contador de histórias nos ajuda a interpretar as informações, integrá-las com o nosso conhecimento existente e transmutar aquilo em sabedoria.

Susan Sontag disse uma vez que “a leitura estabelece padrões.” Storytelling não só estabelece padrões, mas, no seu melhor, nos faz querer viver de acordo com eles para transcendê-los.

Uma grande história, então, não é simples fornecimento de informações, embora certamente ela possa informar. Uma grande história convida a uma expansão da compreensão, a uma auto-transcendência. Mais do que isso, ela planta a semente para isso e torna impossível fazer qualquer coisa além de cultivar uma nova compreensão – do mundo, de nosso lugar nele, de nós mesmos, de algum aspecto sutil ou monumental da existência.

Num ponto em que a informação é cada vez mais barata e sabedoria cada vez mais cara, essa lacuna é o lugar onde reside o valor do contador de histórias moderno.

Eu penso da seguinte maneira.

Informação é ter uma biblioteca de livros sobre construção naval. Conhecimento é o que se aplica na construção de um navio. Acesso à informação – aos livros – é um pré-requisito para o conhecimento, mas não uma garantia do mesmo.

Uma vez que você construiu seu navio, a sabedoria é o que lhe permite navegar sem afundar, protegendo-o da tempestade que toma o horizonte na calada da noite, manobrando de forma que o vento sopra vida em suas velas.

Sabedoria moral ajuda a perceber a diferença entre a direção certa e a direção errada na condução do navio.

Um grande contador de histórias é o capitão gentil que navega seu barco com enorme sabedoria e coragem sem limites; que aponta o nariz na direção de horizontes e mundos escolhidos com o idealismo e a integridade inabaláveis; que nos traz um pouco mais perto da resposta, a nossa resposta particular, para aquela grande questão: por que estamos aqui?”

***

Leia também:

– O tempo perdido do gerenciamento de mídias digitais.
– Quando a mente entra em estado de Facebook

O tempo perdido do gerenciamento de mídias digitais

14354989289_2eec0ba724_b

Dizem, popularmente, que logo antes de morrermos passa na nossa cabeça um filmezinho que resume toda a nossa vida. Um amigo meu tinha uma teoria alternativa: nesse filme só tem os momentos mais constrangedores que passamos, como tropeçar pelado botando a calça apressadamente, cumprimentar alguém de longe e perceber que é um desconhecido, fazer um comentário desnecessário num jantar, essas coisas.

Mas eu acho que nos últimos tempos surgiu uma terceira versão disso. O filmezinho contemporâneo que passa na cabeça de quem vai morrer e viveu imerso na cultura digital é provavelmente um compacto só com cenas de todo o tempo perdeu organizando sua vida tecnológica – arrumando a agenda do celular, organizando as fotos no computador, limpando a caixa de emails, bloqueando pessoas ou jogos no Facebook, escolhendo avatar pro What’sApp, escolhendo filme no Netflix, procurando o torrent certo, e por aí vai. Toda vez que eu me pego fazendo uma dessas coisas, não consigo evitar de pensar que “um dia eu vou morrer e estou aqui perdendo tempo com os labels do Gmail”.

Esse é um dos golpes mais sacanas da cultura digital. A cada ano (ou mês, ou dia), somos apresentados a uma novidade que promete simplificar nossa vida e nos dar mais tempo livre. Mas o sistema no qual estamos inseridos e que produz todas essas novidades produz junto uma série de pequenas ações, conteúdos e compromissos que nos afogam ainda mais. O especialista em cultura de convergência Henry Jenkins já escreveu em Cultura da Convergência sobre o que chama de “A Falácia da Caixa Preta”, ou seja, o conceito periodicamente resgatado (e enganoso) de que “cedo ou tarde todo conteúdo de mídia vai fluir através de uma única caixinha”.  A certa altura, após algumas reflexões teóricas, ele destaca: “não sei quanto a vocês, mas eu estou vendo cada vez mais caixas pretas na minha casa”. E, completo, junto com as caixinhas vem as tarefinhas. Isso só vai acabar de fato quando estivermos dentro de outra caixa, embaixo da terra.

Pra quem trabalha inserido em contextos digitais, não há muito o que se fazer a não ser manter uma atenção constante e uma mentalidade minimalista caso não queira ser levado pela enxurrada de atualizações, notificações e providências burocráticas disfarçadas de design fofinho dentro de caixinhas. Uma vez, ouvi o Lama Padma Samtem dizer issonuma palestra: “onde se constrói piso, as folhas se acumulam”. Enquanto não encontramos uma saída definitiva, só nos resta varrer com certa graça.

***

Leia também:

O app Humim quer revolucionar minha agenda? Não, obrigado.

***

Foto: Raumrot

Black Mirror e o clima de raiva no Facebook das eleições

waldo

O clima emocional que vem se tornando cada vez mais tenso no Facebook por causa das eleições está me lembrando muito os episódios mais políticos da série inglesa Black Mirror. Criada em 2011 pelo produtor e roteirista Charlie Brooker, a série tem duas temporadas de três episódios cada e trata do comportamento humano infuenciado pela tecnologia num futuro próximo. Já escrevi sobre a primeira temporada no post Black Mirror, a série do agora e a quem está intrigado ou incomodado com a alta temperatura do clima eleitoral, eu sugiro fortemente assistir dois episódios específicos da segunda temporada.

O episódio 3, The Waldo Moment, conta a história de um personagem de computação gráfica que é usado pra sacanear políticos e autoridades em um programa de entrevistas de final de noite. Os entrevistados, alienados dos gostos do público, são enganados pela emissora de TV pra pensar que estão participando de um programa infantil quando na verdade estão sendo massacrados sarcasticamente pelo personagem. Waldo é controlado e dublado remotamente por um humorista talentoso que entra em parafuso quando a produção resolve lançá-lo (Waldo, não o humorista) como candidato para enfrentar um oponente conservador. A disputa sai dos estúdios de TV e vai para as ruas, onde uma van equipada com uma tela gigante segue o conservador para que Waldo possa espinafrá-lo em praça pública.

Não vou dar spoilers, mas os desdobramentos de uma disputa entre um personagem de computação gráfica e um candidato humano são conduzidos de maneira a subverter totalmente  o que seria o clichê dessa temática – comparar a artificialidade dos políticos com as do personagem. O que acontece é justamente o contrário. Emergem, por trás da iniciativa inovadora e bem intencionada, os sentimentos humanos mais confusos e negros de todos os envolvidos. “The Waldo Moment” me lembra muito o que vejo todos os dias no Facebook: as críticas à baixa qualidade e às incoerências dos políticos muitas vezes vem de pessoas que não parecem aplicar a si mesmas o filtro que querem aplicar a eles.

BlackMirrorWhiteBearScreenshot

O episódio 2, The White Bear, é simplesmente perturbador quanto ao ponto que podemos chegar coletivamente se deixarmos que o ódio social e político tome conta da nossa cultura. Começa com uma mulher, Victoria, acordando em um quarto sem lembrar do que aconteceu e como foi parar ali. Constantemente cercada pela foto de uma menina e de um homem, que parecem ser seu marido e sua filha, ela é perseguida por homens mascarados e armados enquanto dezenas de pessoas a filmam e fotografam com celulares sem oferecer qualquer tipo de ajuda. Caçada sem descanso, ela acaba encontrando o que parece ser algum tipo de milícia de resistência, mas pouca coisa faz sentido na sucessão veloz dos acontecimentos.

Uma virada no meio do episódio contextualiza o que Victoria está passando, mas não posso dar qualquer tipo de pista pra não estragar a surpresa. Apenas digo que o desfecho é mais um toque importante a respeito do perigo que corremos de nos desumanizarmos quando incentivamos atitudes violentas num contexto de onipresença das mídias eletrônicas e digitais. Outro ponto que tem me lembrado as reações impulsivas e exageradas no Facebook nessas eleições onde toda declaração e todo candidato é alvo de reações em altíssima amperagem.

Black Mirror não saiu no Brasil e está disponível apenas nos torrents. Dê um jeito de assisti-lo antes do final das eleições pois, como eu disse no meu primeiro post, ela é um dos melhores comentários sobre o agora disfarçado de ficção científica.

***

Nada a ver com as eleições, mas ainda digno de nota: o primeiro episódio da segunda temporada de Black Mirror é tão bom e instigante quanto os outros. Conta a história de uma viúva que resgata o convívio com o ex-marido através de um avatar físico, meio clone, que se comunica com ela a partir de todas as memórias digitais que ele acumulou na vida. Mais uma vez parece loucura ou ficção científica. Mas já tem uma startup planejando oferecer um serviço semelhante. Segundo a Proxxima, o Eterni.me usa acesso aos dados digitais do falecido para “criar uma ‘consciência’ no computador que permitirá a interação com outros usuários.” O site do Eterni.me já oferece cadastro para interessados e faz uma promessa grandiosa que parece mesmo saída de um roteiro pra TV: “Simply become immortal”.

Dica: o episódio é muito mais profundo e interessante do que a proposta da startup.

***

Leia também:

– Precisamos de uma revolução cool