A perigosa cultura narrativa do "Como Mudar o Mundo e Sua Vida"

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Mês passado, o Gustavo Gitti publicou no Papo de Homem um texto criticando os excessos do que poderíamos chamar de “cultura do aprimoramento”. Disse ele:

“Estamos na era do aprimoramento pessoal. ‘Como’ e ‘melhorar’ são os novos mantras: como melhorar a alimentação, como melhorar o trabalho, como melhorar o relacionamento… Quando aparece a palavra ‘rim’, é porque o rim não está funcionando bem. Quando se fala muito em paz, é porque não há paz. Se cada vez mais ouvimos sobre desenvolvimento humano, felicidade e transformação, talvez seja por que nunca estivemos tão confusos em relação ao que isso realmente significa.”

O post envereda por questões internas ao ser humano sobre o que de fato significa transformação, buscando falar do que vai além das aparências externas. Sem entrar em questões semânticas absolutas, ele estabelece, para efeito de diálogo, uma distinção entre mudança e transformação:

“O processo da mudança funciona como uma constante busca por novas experiências. Quando alguém diz ‘Mudei’ na maioria das vezes quer dizer: ‘Troquei de experiência’. O processo de transformação trabalha com toda e qualquer experiência, com cada vez menos necessidade de buscar por novas experiências ou de alterá-las externamente.”

Mudança seria, então, uma “revolução” mais aparente e também mais superficial. A transformação, por outro lado, exigiria um auto-entendimento mais refinado e menos dependente de manifestações externas. Mudança se anuncia, transformação se empreende. Mudança rende poemas, canções, videocases. Transformações rendem seu próprio resultado, que muitas vezes vem de um processo longo, demorado e pouco cinematográfico. Às vezes, inclusive, rende apenas seu próprio processo. Mas o fato de, hoje, a mudança ser muito mais popular do que a transformação não deve ser debitado unicamente na conta da dificuldade inerente das transformações. A cultura contemporânea tem celebrado e estimulado intensamente a ideia de mudança – rápida, formulaica e vibrante, já que a transformação não rende boas histórias se contada honestamente, pois demora demais pra acontecer e nem sempre gera fogos de artifício.

Segue Gitti:

“Não é fácil detectar o limite do processo de mudança em uma cultura que promove tantas soluções desse tipo. O site do TED é uma boa amostra desse zeitgeist atual. As palestras, se vistas em conjunto, parecem comunicar uma mensagem assim: Você quer se transformar? Basta saber disso, estudar aquela pesquisa, ler tal livro, não esquecer daquilo, começar a dormir mais, usar esse novo modelo de pensamento, se exercitar assim, comer isso, fazer tal coisa, implementar tal hábito…”

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Os vídeos das conferências TED Talks, que condensam ideias complexas e impactantes de cientistas, intelectuais, artistas e empreendedores em no máximo 18 minutos, são um dos vetores culturais mais poderosos da última década na internet. O site do TED tem cerca de 1500 vídeos que já foram assistidos mais de um bilhão de vezes. A estética TED Talks de apresentar ideias influenciou o mundo corporativo, o universo acadêmico e toda uma geração de jovens empreendedores (bem como os Muppets). Graças ao TED, para milhões de pessoas, um projeto de “mudar” ou de “mudar o mundo” é algo que precisa caber em 18 minutos além de ser necessariamente contado de maneira empolgante. Que medo.

Embora eu tenha assistido com gosto muitos vídeos do TED e reconheça o poder e as virtudes da síntese e do storytelling na vida prática, quando se fala de transformação real e profunda, penso que é temeroso acostumar-se unicamente com um paradigma baseado em “eficiência de plateia”. E é visível, ao menos nos meios que frequento e que acompanho, a confusão gerada pela estética TED Talks nesse sentido. Há os que acham que o resultado da transformação deve caber numa palestra ou num vídeo; há os que acham que a palestra/vídeo É o resultado da transformação; e há, o mais perigoso, os que não reconhecem o valor das pessoas que transformam e que geram transformação mas cuja fala não se alinha com a estética TED Talks. Que medo, de novo…

Semana passada, o site Motherboard aproveitou o buzz em torno da nova rede social Ello para destrinchar a história meteórica da Diaspora. Assim como o Ello, a Diaspora surgiu como uma alternativa ao Facebook, mais livre, mais privada e supostamente embebida em ideais mais nobres. Não sabemos o que será da Ello, mas a Diaspora naufragou devido a uma mistura de obstáculos internos e de contexto econômico-cultural. Isso não impediu que seus criadores fossem assediados pela mídia e erguidos em pedestais cedo demais, muito antes que suas ideias pudessem se provar eficientes e realmente transformadoras. A narrativa de ascensão e queda da Diaspora, dramática porque envolve até mesmo um suicídio, é fruto, em parte, da cultura TED Talks – era esperado por todos os lados que eles condensassem um amadurecimento de ideia aceleradamente. Live fast, die young. O ditado cinquentão ainda faz sentido na era digital.

Narrativas de transformação dificilmente cabem em videocases ou posts, mas podem dar livros interessantes. Procure a trilogia de Fernando Gabeira, por exemplo. Em O que é isso, Companheiro?,  O Crepúsculo do Macho e Entradas e Bandeiras o ex-guerrilheiro conta a longa, batalhada e dolorosa transformação pela qual passou antes, durante e depois da ditadura. Só não espere lições de vida ou listas de atitudes positivas. Outra boa dica é Jovens de um novo tempo, despertai onde o Nobel de Literatura Kenzaburo Oe tenta “explicar todas as coisas do mundo” a seu filho deficiente e se perde nos próprios devaneios e dificuldades tentando triangular a relação com o menino, seu projeto literário e seu amor pela poesia de William Blake. Impossível condensar essa história de transformação em um post de Facebook. Se ainda não estiver convencido, leia Depois do Êxtase, Lave a Roupa Suja, coletânea de centenas de entrevistas do professor de meditação americano Jack Kornfield com monges, lamas, padres, freiras e outros mestres espirituais sobre o lado B da vida espiritual. Acho que nenhum deles ali palestrou no TED.

Em resumo, é bacana e bem vindo que exista no ar essa energia que tende à mudança, à busca de novas perspectivas, de alargamento de horizontes. Mas ela é melhor acompanhada por uma dose certa de ceticismo, daquele tipo que não desestimula a busca por transformação mas que também não aceita tratar de um assunto tão importante com uma abordagem de programa de auditório hipster. O padre jesuíta John Culkin disse no século passado que “Moldamos nossas ferramentas e nossas ferramentas nos moldam”. Neste século, quando a comunicação e a linguagem são forças dominantes mais do que o trabalho, poderíamos dizer: “Moldamos nossas narrativas e nossas narrativas nos moldam”. É algo no qual vale a pena prestar muita atenção.

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Na verdade, se formos um pouquinho mais fundo, vamos encontrar essa narrativa incorporada fortemente à cultura americana, que continua sendo uma das grandes influências da cultura global, não importa o que falem sobre a Ásia ou a América Latina. No dia 11 de setembro, ironicamente,  o The New York Times publicou em sua revista de varieadades um longo ensaio chamado “A Morte da Idade Adulta na Cultura Americana”. Nele, o crítico de cinema A.O.  Scott traça uma linha que começa na literatura do século XIX do seu país e chega até os seriados e as sagas literárias atuais ressaltando, entre outras coisas, sua ode ao escapismo. E cita Love and Death in The American Novel, escrito na década de 60 pela crítica literária Leslie Fiedler, que diz: “Um dos fatores que determina o tema e forma de nossos maiores livros é a estratégia de evasão, essa retirada para a natureza e para a infância que faz nossa literatura (e nossa vida!) tão encantadoramente e irritantemente masculina (boyish).” Não é difícil associar esse tipo de mentalidade com a cultura TED Talks / Vale do Silício.

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Se você gostou desse texto, talvez curta meus próprios relatos de mudança:

– A busca pelo sentido no trabalho e as videocassetadas.

– Por uma vida mais ordinária.

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Fotos: Raumrot

6 comentários em “A perigosa cultura narrativa do "Como Mudar o Mundo e Sua Vida"

  1. Esses teus textos, este tipo exatamente, que questiona essa imposição de comportamentos, essa necessidade de sermos, fazermos etc, me ajudaram muito nos dois últimos anos, além de inúmeros outros assuntos também. Mini tu é um grande pensador e catalizador de ideias, gosto muito das tuas exposições.

  2. Esses teus textos, este tipo exatamente, que questiona essa imposição de comportamentos, essa necessidade de sermos, fazermos etc, me ajudaram muito nos dois últimos anos, além de inúmeros outros assuntos também. Mini tu é um grande pensador e catalizador de ideias, gosto muito das tuas exposições.

  3. Quando leio textos como este teu me dá a sensação de que estou sozinho no mundo e que os meus pares estão espalhados e bem longe de mim, pois ao olhar ao redor vejo cada vez mais pessoas preocupadas com o superficial, e quando são “espiritualizadas”, se tornam justamente as fundamentalistazinhas do caminho certo – sempre o que elas seguem, seja o zen, o budismo ou o ateísmo. Eu já venho há um tempo pensando nisso que você escreveu, que transformações não viram filme, e na mesma hora que me dá um certeza de estar, aos trancos e barranco, num caminho mais adequado para o meu aprendizado, por outro lado uma agustia de estar fazendo tudo errado e remando contra a maré. Que bom que é assim, pq quem tem certeza não muda, não entra em crise, se conforma e acha que está tudo (ou pelo menos a maior parte) bem.
    Parabéns pelo site e por este texto em particular.
    Grande abraço

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