O Círculo: talvez o livro mais importante de 2014

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O ano já se encaminha para o final, mas ainda dá tempo: O Círculo, romance de Dave Eggers que narra a ascensão de uma funcionária exemplar na empresa de tecnologia mais criativa do mundo, pode ser lido sem pressa em poucos dias, digamos, entre o Natal e o Ano Novo. Não que sua atualidade tenha data de validade tão curta ( o livro é de 2013!), mas defendo que este livro, mesmo com seus pequenos defeitos literários, talvez seja um importante marco na cultura contemporânea. O que Eggers fez não é pouco – ele escreveu a fábula definitiva que encerra um período de ingenuidade sobre o que o universo simbólico do Vale do Silício tem a oferecer para o mundo. Quanto antes passarmos isso a limpo, melhor.

A história de Mae Holland, personagem principal do romance, é facilmente reconhecível mesmo por quem não acompanha o noticiário especializado de tecnologia. Recém formada e enfiada em uma repartição pública do interior da Califórnia, Mae é resgatada de sua vidinha ordinária por uma ex-colega de faculdade que lhe devia alguma fidelidade. A dívida é paga com juros. Annie, a amiga socialmente bem posicionada de Mae, faz parte da elite do Círculo, o Google do universo criado por Eggers, que revolucionou a vida online unificando todos os perfis e identidades virtuais no TruYou, “uma conta, uma identidade, uma senha, um sistema de pagamento por pessoa” no qual se usa “seu nome verdadeiro, que está vinculado a seus cartões de crédito, seu banco”, ou seja, “um botão para o resto da sua vida online”. A sede do Círculo, situado em uma cidade fictícia próxima a San Francisco, é tudo aquilo que Mae – e boa parte dos jovens hoje – quer de um ambiente de trabalho: uma Shangri-la moderna, com calçadas pavimentadas com pedras contendo mensagens inspiradoras, comida orgânica gratuita, shows e espetáculos diários com grandes artistas no refeitório, festas temáticas semanais, um hotel interno para quem não quer dirigir de volta pra casa depois do serão, medicina preventiva baseada em sensores intracorporais e big data, além de uma demografia clara no recrutamento (só jovens bacanas e interessantes entram para O Círculo). É nessa empresa, que Eggers parece ter construído a partir de uma pesquisa sobre “onde as pessoas de 2014 gostariam de trabalhar”, que Annie arruma uma vaga para sua ex-colega da graduação.

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[o autor]

Mae começa por baixo, na área de atendimento ao cliente, e primeiro estranha a intensidade social dos funcionários do Círculo, que vivem o campus como se fosse o único lugar do mundo onde vale a pena estar. Mas, rapidamente, ela não só é seduzida pela vida no Círculo como engata uma trajetória de protagonismo pagando alguns preços que Eggers – mas não Mae – considera caros. Sua privacidade, sua relação com os pais, com a amiga Annie e com qualquer coisa que não seja a filosofa essencial dos Três Sábios, o board que preside O Círculo, tudo vai sendo deixado para trás em nome de um avanço radical em busca da transparência digital definitiva. O livro se desenrola na sua dupla função, de sátira e thriller. A meio caminho do final, um forte suspense tempera a divertidíssima crônica de costumes que cobre praticamente todos os exageros que viemos cometendo nos últimos 15 anos no uso indiscriminado e experimental do que quer que a indústria da tecnologia sacuda na nossa cara. Os ruídos de comunicação gerados pelo contato virtual, a carência emocional convertida dados de audiência pessoal, a autoexposição que busca soterrar angústias profundas, o reality show que pulou da TV pras nossas timelines – O Círculo de Eggers parece mais um catálogo das pequenas insanidades cotidianas da hipermodernidade.

Apesar de algumas forçadas de barra narrativas (bem sublinhadas por essa resenha do NYT) e da tradução para o português que não tem como dar conta da mania dos personagens de falarem discursando como se estivessem no TED Talks (algo que flui melhor em inglês), O Círculo tem o gigantesco mérito de expandir para uma audiência mais mainstream linhas de discussão que até então viviam restritas aos textos de especialistas como Jaron Lanier, Evgene Morozov e Douglas Rushkoff. O poder de influência das empresas de tecnologia sobre a sociedade via ferramentas e códigos culturais, sua tendência monopolista disfarçada de simpatia é quase amor, sua relação ambígua com Governos e políticas públicas, seu impulso de pedir transparência aos usuários enquanto trabalham sob uma redoma frequentemente opaca, nada disso interessa ao público médio na forma de ensaios político-culturais. Nesse sentido, O Círculo funciona como um cavalo de tróia – você está lá, se divertindo com as patuscadas de Mae Holland na prosa quase televisiva de Eggers e, quando percebe, sua mente foi inoculada com uma série de questionamentos absolutamente sérios e relevantes sobre onde fica o limite entre a disrupção tecnológica útil e a demência capitalista-digital que mascara emoções destrutivas com design minimalista e responsivo.

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Antes de escrever esse post, me perguntei se ele seria relevante no contexto brasileiro, uma vez que a história de O Círculo depende em parte de conhecermos um pouco do funcionamento do Vale do Silício. Mas então lembrei que há pouco tivemos uma novela das sete com a mesma temática; que revistas mainstream como Época Negócios, Exame PME e Veja tem destilado essa filosofia em suas páginas há anos; que a morte de Steve Jobs comoveu Luciana Gimenez; e que mesmo aqui, em Porto Alegre, empresários de todos os portes e idades parecem querer emular o jeito de fazer negócios (e de se exibir) de San Francisco. Onde houver uma empresa que pensou em colocar (ou colocou) um videogame na área do cafezinho pra se sentir mais moderna, a leitura de O Círculo se faz necessária.

Conforme escrevi nos posts Softer, Worser, Slower, Weaker e A Perigosa Cultura do Como Mudar o Mundo e Sua Vida, estamos passando por um momento de deslumbramento com práticas empresariais supostamente modernas mas que, muitas vezes, tem por trás as mesmas intenções e valores de sempre – crescer e conquistar território. O fato de que essas intenções hoje são mais facilmente disfarçadas com propósitos “sociais” e slogans “inspiradores” é algo que deveria nos incentivar a ter sempre um pé atrás e uma sobrancelha levantada com empreendedores hiperbólicos. Só assim descobrimos, por exemplo, que a narrativa da startup que nasce em uma garagem no Vale do Silício é, em geral, mais mito do que de verdade. E que muitos empresários da era digital podem ser considerados, como escreveu Fernand Alphen, “robber Barons modernos”, alcunha historicamente reservada a latifundiários inescrupulosos na Europa medieval ou a industriais vorazes nos Estados Unidos do século XIX. Só assim mantemos uma atitude saudável de nos perguntarmos, como fez a Bia Granja, se não devemos deixar de usar um app super popular e útil (e com uma aura suuuper moderna) devido aos valores questionáveis de seus criadores.

O Círculo é o livro que faltava pra condensar todas essas suspeitas em uma obra de apelop pop e que você pode levar embaixo do braço lembrando que uma empresa mercantilista e messiânica não deixa de ser mercantilista e messiânica só porque sua sede parece um café do Brooklyn e seu discurso corporativo soa como um vídeo de autoajuda. Tudo bem se você quer conquistar o mundo com suas ideias, seu dinheiro e sua energia. Mas, como bem resume um ditado popular, não vem me contar que eu não sou dinheiro.

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Outra coisa: de certa forma, achei que O Círculo é a versão século XXI de Microservos, romance de 1995 escrito por Douglas Coupland (o mesmo de Geração X). Microservos conta a história de um grupo de nerds hardcore com imensos talentos (e dificuldades de relacionamento do mesmo tamanho) que deixam a Microsoft para embarcar em um projeto semi-autoral. É bem mais emocional e poético do que O Círculo (ao estilo de Coupland), mas vale comparar os dois pra sentir o papel da tecnologia e seus personagens no meio da década de 90 (ainda marginais e desajeitados) e quase 20 anos depois (no centrão da cultura pop).

Microservos saiu no Brasil na época pela Nova Fronteira com uma capa idêntica à versão original (aí de cima) e é super difícil de achar, mesmo em sebos. Eu ainda tenho o meu. 🙂

Imagens: Be Nourished e Busty Teacher.

A perigosa cultura narrativa do "Como Mudar o Mundo e Sua Vida"

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Mês passado, o Gustavo Gitti publicou no Papo de Homem um texto criticando os excessos do que poderíamos chamar de “cultura do aprimoramento”. Disse ele:

“Estamos na era do aprimoramento pessoal. ‘Como’ e ‘melhorar’ são os novos mantras: como melhorar a alimentação, como melhorar o trabalho, como melhorar o relacionamento… Quando aparece a palavra ‘rim’, é porque o rim não está funcionando bem. Quando se fala muito em paz, é porque não há paz. Se cada vez mais ouvimos sobre desenvolvimento humano, felicidade e transformação, talvez seja por que nunca estivemos tão confusos em relação ao que isso realmente significa.”

O post envereda por questões internas ao ser humano sobre o que de fato significa transformação, buscando falar do que vai além das aparências externas. Sem entrar em questões semânticas absolutas, ele estabelece, para efeito de diálogo, uma distinção entre mudança e transformação:

“O processo da mudança funciona como uma constante busca por novas experiências. Quando alguém diz ‘Mudei’ na maioria das vezes quer dizer: ‘Troquei de experiência’. O processo de transformação trabalha com toda e qualquer experiência, com cada vez menos necessidade de buscar por novas experiências ou de alterá-las externamente.”

Mudança seria, então, uma “revolução” mais aparente e também mais superficial. A transformação, por outro lado, exigiria um auto-entendimento mais refinado e menos dependente de manifestações externas. Mudança se anuncia, transformação se empreende. Mudança rende poemas, canções, videocases. Transformações rendem seu próprio resultado, que muitas vezes vem de um processo longo, demorado e pouco cinematográfico. Às vezes, inclusive, rende apenas seu próprio processo. Mas o fato de, hoje, a mudança ser muito mais popular do que a transformação não deve ser debitado unicamente na conta da dificuldade inerente das transformações. A cultura contemporânea tem celebrado e estimulado intensamente a ideia de mudança – rápida, formulaica e vibrante, já que a transformação não rende boas histórias se contada honestamente, pois demora demais pra acontecer e nem sempre gera fogos de artifício.

Segue Gitti:

“Não é fácil detectar o limite do processo de mudança em uma cultura que promove tantas soluções desse tipo. O site do TED é uma boa amostra desse zeitgeist atual. As palestras, se vistas em conjunto, parecem comunicar uma mensagem assim: Você quer se transformar? Basta saber disso, estudar aquela pesquisa, ler tal livro, não esquecer daquilo, começar a dormir mais, usar esse novo modelo de pensamento, se exercitar assim, comer isso, fazer tal coisa, implementar tal hábito…”

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Os vídeos das conferências TED Talks, que condensam ideias complexas e impactantes de cientistas, intelectuais, artistas e empreendedores em no máximo 18 minutos, são um dos vetores culturais mais poderosos da última década na internet. O site do TED tem cerca de 1500 vídeos que já foram assistidos mais de um bilhão de vezes. A estética TED Talks de apresentar ideias influenciou o mundo corporativo, o universo acadêmico e toda uma geração de jovens empreendedores (bem como os Muppets). Graças ao TED, para milhões de pessoas, um projeto de “mudar” ou de “mudar o mundo” é algo que precisa caber em 18 minutos além de ser necessariamente contado de maneira empolgante. Que medo.

Embora eu tenha assistido com gosto muitos vídeos do TED e reconheça o poder e as virtudes da síntese e do storytelling na vida prática, quando se fala de transformação real e profunda, penso que é temeroso acostumar-se unicamente com um paradigma baseado em “eficiência de plateia”. E é visível, ao menos nos meios que frequento e que acompanho, a confusão gerada pela estética TED Talks nesse sentido. Há os que acham que o resultado da transformação deve caber numa palestra ou num vídeo; há os que acham que a palestra/vídeo É o resultado da transformação; e há, o mais perigoso, os que não reconhecem o valor das pessoas que transformam e que geram transformação mas cuja fala não se alinha com a estética TED Talks. Que medo, de novo…

Semana passada, o site Motherboard aproveitou o buzz em torno da nova rede social Ello para destrinchar a história meteórica da Diaspora. Assim como o Ello, a Diaspora surgiu como uma alternativa ao Facebook, mais livre, mais privada e supostamente embebida em ideais mais nobres. Não sabemos o que será da Ello, mas a Diaspora naufragou devido a uma mistura de obstáculos internos e de contexto econômico-cultural. Isso não impediu que seus criadores fossem assediados pela mídia e erguidos em pedestais cedo demais, muito antes que suas ideias pudessem se provar eficientes e realmente transformadoras. A narrativa de ascensão e queda da Diaspora, dramática porque envolve até mesmo um suicídio, é fruto, em parte, da cultura TED Talks – era esperado por todos os lados que eles condensassem um amadurecimento de ideia aceleradamente. Live fast, die young. O ditado cinquentão ainda faz sentido na era digital.

Narrativas de transformação dificilmente cabem em videocases ou posts, mas podem dar livros interessantes. Procure a trilogia de Fernando Gabeira, por exemplo. Em O que é isso, Companheiro?,  O Crepúsculo do Macho e Entradas e Bandeiras o ex-guerrilheiro conta a longa, batalhada e dolorosa transformação pela qual passou antes, durante e depois da ditadura. Só não espere lições de vida ou listas de atitudes positivas. Outra boa dica é Jovens de um novo tempo, despertai onde o Nobel de Literatura Kenzaburo Oe tenta “explicar todas as coisas do mundo” a seu filho deficiente e se perde nos próprios devaneios e dificuldades tentando triangular a relação com o menino, seu projeto literário e seu amor pela poesia de William Blake. Impossível condensar essa história de transformação em um post de Facebook. Se ainda não estiver convencido, leia Depois do Êxtase, Lave a Roupa Suja, coletânea de centenas de entrevistas do professor de meditação americano Jack Kornfield com monges, lamas, padres, freiras e outros mestres espirituais sobre o lado B da vida espiritual. Acho que nenhum deles ali palestrou no TED.

Em resumo, é bacana e bem vindo que exista no ar essa energia que tende à mudança, à busca de novas perspectivas, de alargamento de horizontes. Mas ela é melhor acompanhada por uma dose certa de ceticismo, daquele tipo que não desestimula a busca por transformação mas que também não aceita tratar de um assunto tão importante com uma abordagem de programa de auditório hipster. O padre jesuíta John Culkin disse no século passado que “Moldamos nossas ferramentas e nossas ferramentas nos moldam”. Neste século, quando a comunicação e a linguagem são forças dominantes mais do que o trabalho, poderíamos dizer: “Moldamos nossas narrativas e nossas narrativas nos moldam”. É algo no qual vale a pena prestar muita atenção.

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Na verdade, se formos um pouquinho mais fundo, vamos encontrar essa narrativa incorporada fortemente à cultura americana, que continua sendo uma das grandes influências da cultura global, não importa o que falem sobre a Ásia ou a América Latina. No dia 11 de setembro, ironicamente,  o The New York Times publicou em sua revista de varieadades um longo ensaio chamado “A Morte da Idade Adulta na Cultura Americana”. Nele, o crítico de cinema A.O.  Scott traça uma linha que começa na literatura do século XIX do seu país e chega até os seriados e as sagas literárias atuais ressaltando, entre outras coisas, sua ode ao escapismo. E cita Love and Death in The American Novel, escrito na década de 60 pela crítica literária Leslie Fiedler, que diz: “Um dos fatores que determina o tema e forma de nossos maiores livros é a estratégia de evasão, essa retirada para a natureza e para a infância que faz nossa literatura (e nossa vida!) tão encantadoramente e irritantemente masculina (boyish).” Não é difícil associar esse tipo de mentalidade com a cultura TED Talks / Vale do Silício.

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Se você gostou desse texto, talvez curta meus próprios relatos de mudança:

– A busca pelo sentido no trabalho e as videocassetadas.

– Por uma vida mais ordinária.

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Fotos: Raumrot

Scratch: a revista que fala abertamente sobre escrita & dinheiro

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Escrever e ganhar dinheiro: eis aí um tabu persistente. Seja pela queda de braço entre escritores/jornalistas e editoras/publicações, seja porque alguns escritores parecem ganhar dinheiro demais e outros nenhum, seja porque alguns artistas tem problemas com a venda de seu trabalho, esse é um assunto que nunca esgota seus ângulos de abordagem. Hoje, com o fato da cultura digital ter multiplicado violentamente o número de pessoas que escrevem e que buscam ganhar por isso, surgir uma publicação como a Scratch parece algo bastante natural e necessário.

Fundada pela editora Jane Friedman e pela freelance Manjula Martin, a Scratch se define como “uma revista digital sobre a relação entre escrita, dinheiro e vida” e considera pouco o que tem se falado abertamente sobre a realidade econômica desse setor do ponto de vista dos escritores. “Aos escritores geralmente falta contexto ou insight para entender nossa própria indústria, mesmo que essa indústria esteja passando por gigantescas mudanças econômicas e estruturais.” escrevem as criadoras na apresentação da revista.

A Scratch já tem 3 números publicados e o primeiro está para download gratuito na Banca do iPad. Entre outros features, traz uma entrevistona com o Jonathan Franzen sobre a remuneração e o ofício do escriba, além de um papo super bacana entre os editores online da Slate, da Atlantic e da The Toast. Eu devorei a primeira edição e fiquei não apenas com vontade de ler mais como também de escrever sobre o assunto. Afinal, como as editoras da Scratch dizem: “Vamos encarar a verdade: ninguém realmente sabe como esse negócio funciona. Não temos todas as respostas, mas sabemos que o futuro da mídia é inteligente, flexível e irreparavelmente transparente. E está nas nossas mãos.”

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Ah: o podcast The New Disruptors, do Boing Boing, entrevistou Friedman e Martin. O papo está abaixo:

Como mudar o mundo lavando a louça

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Um dos efeitos mais interessantes do avanço da cultura digital é a globalização definitiva da ideia de que tem muita coisa pra se consertar no mundo. Antes da internet, nosso contato com os problemas ao redor do planeta não apenas dependiam da edição das agências de notícia e dos grandes veículos como tinham interferência limitada no nosso cotidiano, ficando restritos aos horários de noticiários de rádio e tv ou ao momento da leitura do jornal. Com a internet, a coisa é bem diferente: a qualquer momento podemos ser (e frequentemente somos) impactados via rede social ou email por fotos, vídeos, reportagens, abaixo-assinados e todo o tipo de registro de mazelas, tragédias e falcatruas. Como se não bastasse, esses impactos vem dos lugares mais variados. Pode ser um desabamento no estado vizinho ou um assalto no prédio vizinho, um atentado terrorista do outro lado do oceano ou crianças passando fome do outro lado da rua. A avalanche de informação típica da era digital não é feita apenas de frivolidades e o contato constante com certas realidades toca a todos por alguns segundos, deixando sempre uma pergunta no ar: o que é que eu posso fazer?

Segundo o jornalista inglês John-Paul Flintoff, autor do pequeno e simpático manual “Como mudar o mundo”, você pode fazer muita coisa. E, o mais importante: fazer algo não significa exclusivamente se lançar em missões dramáticas como largar tudo e se juntar aos Médico Sem Fronteiras ou entregar sopa quente aos sem-teto nas noites frias de inverno. Para Flintoff, a ideia de que só ajudamos no mundo através de um determinado tipo de ação e com uma alta carga de intensidade é o que impede muitas pessoas de empreenderem pequenos atos dentro de seus desejos e possibilidades, o que poderia fazer uma grande diferença. Em se tratando de ativismo social, não existe ação pequena ou desperdiçada. Você não precisa se tornar um messias para ajudar a melhorar as coisas.

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Essa é a principal beleza de “Como mudar o mundo”. Não queremos mais alguém nos dizendo populisticamente que deveríamos levantar a bunda do sofá e revolucionar as coisas. Esse tipo de chamado acaba distanciando as pessoas do ativismo social por deixar pesado um campo que já não é fácil de digerir. Embora bilhões de pessoas se comovam com as dificuldades de seus pares, poucos se consideram à altura de Gandhi ou de Nelson Mandela na hora de botar a mão na massa. As histórias de figuras como essas são repletas de lances grandiosos e momentos históricos, o que pode nos ensimesmar diante do desafios cada vez maiores que se apresentam do ponto de vista da coletividade. Diz no capítulo 2 de “Como mudar o mundo”: “Concentrar-se demais em batalhas monumentais – como aquela do estudante chinês solitário que, na Praça da Paz Celestial, em 1989, foi com suas sacolas de compras bloquear uma fileira de tanques – pode ser desnorteador. A ética surge em nossas vidas de formas muito mais comuns, corriqueiras. John Ruskin indagou por que damos medalhas a pessoas que, no calor do momento e sem muita ponderação, salvam a vida de alguém mas não damos medalha a pessoas que dedicam anos à criação de uma criança”. Aí se entende o famoso ditado “Todos querem mudar o mundo e ninguém quer lavar a louça”: é porque não se tem notícias de um mártir que tenha sido condecorado por apresentar uma pia tinindo de limpa.

Para Flintoff, depois de superar o derrotismo e aceitar que é possível fazer alguma coisa pelo mundo, o mais importante é que a pessoa disposta a mudar o mundo encontre dentro de si uma motivação genuína para agir. Ajudar uma entidade ou um vizinho desamparado podem se tornar fardos problemáticos se não estão conectados com atividades ou vontades que façam sentido para quem se coloca à disposição. “Não nos sentiremos motivados a mudar o mundo sob a ameaça de que isso se torne uma obrigação chata – mas se encontrarmos maneiras que coincidam com as coisas de que mais gostamos na vida, maiores as chances de que as levemos adiante.” Em outras palavras, seria um desperdício ter você mal humorado tentando colaborar com refugiados no Oriente Médio quando sua paixão por direito tributário pode solucionar um problemão fiscal e evitar o fechamento de uma creche do seu bairro. Isso talvez não renda um Nobel, mas é uma contribuição inestimável para algumas famílias. E você o fez trabalhando no computador com a bunda grudada na cadeira.

Outra palavra central em “Como mudar o mundo” é  estratégia, ou seja, o princípio de raciocinar antes de agir. Além de questionar-se sobre suas motivações, Flintoff também instiga o leitor a organizar o que considera suas próprias prioridades para mudar o mundo. “Se você não souber o que quer consertar, será impossível fazê-lo.” Listar questões genéricas como “guerra, fome e pobreza” não são de muita utilidade e o autor sugere ao longo de pelo menos dez páginas que precisamos refinar nossos impulsos, traduzindo-os em linhas de ação factíveis. Depois disso, lembra que existem níveis diferentes de atuação: você pode querer trabalhar para reduzir a fome entregando quentinhas a sem-teto no inverno, criando campanhas publicitárias para uma ONG, filmando um documentário sobre o assunto ou candidatando-se a vereador para influenciar nas políticas públicas. Todas as vias são válidas e a eficiência de cada uma tem menos a ver com a atividade em si do que com a combinação de vocação, oportunidades e condições do momento.

Ok, mas digamos que você tem esse sentimento contraditório de querer mesmo fazer alguma coisa mas não sentir a menor inclinação pra se envolver diretamente no universo do ativismo social. Não tem problema. Ainda assim “Como mudar o mundo” traz duas sugestões de como você pode contribuir para… mudar o mundo: dar testemunho e acrescentar beleza ao mundo. Dar testemunho é a quintessência da ajuda na era digital. “Somos capazes de mudar o mundo tanto ao passar adiante notícias sobre coisa que precisam ser corrigidas como ao ajudar a promover as tentativas dos outros de consertar essas coisas.” Qualquer um que trabalhe com ativismo social sabe o quanto é penoso jogar luz sobre sua causa, ainda mais se ela não está na agenda da hora da grande mídia. Literalmente milhões de pequenas causas e batalhas estão nas sombras contando com colaboradores que repassem suas mensagens de uma maneira positiva e produtiva. Ou, como diz o filósofo Raymond Willias citado no livro, “a questão não é tornar o desespero convincente, mas sim a esperança possível.” Não deixe, então, que o acusem de slacktivist, de ativista de sofá: a multidão de pessoas que repassam mensagens e vídeos por email ou por redes sociais tem um papel fundamental na mudança do mundo.

Por outro lado, quem simplesmente quer deixar as coisas mais leves ou criativas também está fazendo a sua parte. “Talvez o que nos seduza seja o lado estético da vida.” argumenta Flintoff, abrindo mais uma porta para quem quer mudar o mundo. E ele não está falando de estudar belas arte, se tornar pintor ou escultor, mas considerando válidas mesmo as inclinações mais prosaicas como bordar roupas de segunda mão, criar artesanato em sua própria oficina, abrir um café aconchegante. E segue: “A princípio esses desejos podem parecer totalmente egoístas. Mas não precisamos nos aborrecer com isso, pois quando nos engajamos criativamente no mundo, estamos provocando um impacto. (…) A história mostra que assim que as necessidades mais básicas das pessoas são supridas, o impulso estético entra em atividade. (…) Essas necessidades estão no âmago do que somos e jamais devem ser sacrificadas em nome de um conceito errôneo de seriedade. (…) Para mudar o mundo, também devemos considerar nossos próprios interesses e habilidades – seremos mais eficazes se fizermos coisas que nos vêem naturalmente.”

Em resumo, o grande mérito de “Como mudar o mundo” é abrir dezenas de portas para todo tipo de possibilidade. Mudar o mundo, desse ponto de vista, não é um campo de ação no qual apenas certas pessoas com habilidades e energias específicas podem atuar, mas sim um terreno fértil no qual qualquer um pode brotar como protagonista. Como diz a escritora e ativista Rebeca Solnit, citada no livro, “a menos que tenhamos a sensação de que nós podemos fazer alguma coisa, não temos esperança”. O que John -Paul Flintoff nos oferece é justamente isso: incentivo, estratégia, relatos e exercícios que podem fornecer a literalmente qualquer um a poderosa sensação de que pode fazer alguma coisa.

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“Como mudar o mundo” faz parte de uma coleção bem bacana que inclui outros rápidos manuais de reflexão e ação para a vida contemporânea. Além do livro de Flintoff, eu já li outros dois: Como viver na era digital e Como encontrar o trabalho da sua vida. Todos são altamente recomendáveis e encontráveis em português.

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Há alguns meses, escrevi um post sobre o trabalho do Gene Sharp que lista 198 formas não-violentas de fazer uma revolução e que o Flintoff cita extensivamente em seu livro.

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Foto de abertura do post: New Old Stock.

Nossas historinhas safadas

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“O mundo hoje consome filmes, romances, teatro e televisão em tanta quantidade e com uma fome tão voraz que as artes da estória viraram a principal fonte de inspiração da humanidade, enquanto ela tenta organizar o caos e ter um panorama da vida. (…) Se nós pararmos para pensar nos padrões e nos significados, a vida, como uma Gestalt, dá reviravoltas: primeiro fica séria, depois cômica; estática, frenética; significativa, sem sentido. Os mais importantes acontecimentos mundiais estão além do nosso controle enquanto os acontecimentos pessoais, apesar do nossos esforço para manter nossas mãos na direção, geralmente nos controlam.”

Essas citações foram extraídas da introdução de Story, o best-seller sobre roteiro que resume um dos respeitados seminários do Robert McKee para roteiristas e escritores no mundo todo. Elas dão uma boa ideia do que significa a arte da narrativa para o ser humano há muitos séculos: narrar diverte, instrui, questiona. Mas, antes de mais nada, narrar organiza. O evento mais deprimente e horripilante pelo qual alguém tenha passado, quando contado, tem a vantagem básica de estar, ao menos, organizado no espaço e no tempo. As coisas estavam assim, então aconteceu isso, daí tudo desmoronou, ficamos desse jeito, então aconteceu uma outra coisa que afetou mais umas quantas pessoas e agora está todo mundo assim. Quando aconteceu, foi desorientador, caleidoscópico, mas ainda bem que agora, contado, tem algo parecido com início, meio e fim.

Aprendemos a narrar uns com os outros, sejam os outros nossos pais, a turma com quem crescemos ou os autores de filmes, romances e canções. Em cada cultura, em cada era, um tipo de narrativa se impõe e influencia o nosso jeito de narrar não apenas no nível profissional mas principalmente no nível pessoal – a maneira como contamos a nossa vida para nós mesmos e para os outros. Olhando para o passado distante, vamos encontrar tradições orais e pictóricas. Mais recentemente, a palavra escrita na forma de folhetins e romances teve um impacto substancial na maneira como o ocidental urbano constituiu suas histórias particulares. Hoje, vivemos sob o regime da imagem em movimento e estamos construindo um novo tipo de narrativa moldado por dois fenômenos: a fragmentação da linearidade e a quantidade de pequenas narrativas amadoras à nossa disposição.

É bastante fácil observar a linearidade fragmentada das narrativas profissionais atuais. Os games, com suas tramas abertas, e a música, com sua mistura cada vez mais desconectada do que seria um arquétipo do tempo presente, são o exemplo mais gritante. Mesmo obras que tem uma primeira camada linear, como os filmes de cinema, os seriados de TV e os romances juvenis de aventura, hoje surgem como um ponto em um ecossistema maior, que precisa de um esforço contínuo para ser acompanhado e apreendido em sua totalidade. Até aqui, pouca novidade. Esse aspecto da modernidade tem sido citado, analisado e criticado à exaustão.

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Já a multiplicação de pequenas narrativas amadoras é algo que me parece mais sutil, similar ao efeito da Lua nas marés. Não estou falando de curta-metragens de baixo orçamento que vão direto para o YouTube, mas de outra coisa ainda mais simples. Vamos chamá-las de narrativas sub-amadoras. São nossos SMS’s, emails, curtidas, compartilhamentos, vídeos, fotos, posts, notificações e status, um conjunto que gera campo gravitacional tão gigantesco que estamos, talvez, influenciando uns aos outros bem mais do que os profissionais de narrativas nos influenciam. Em outras palavras, a maneira como os dramas e comédias da sua amiga aparecem na timeline dela ou na sequência de mensagens piscando no seu celular estão mexendo mais com a sua noção de narrativa do que o roteirsta de Breaking Bad ou o autor da última novela das nove.

Isso é algo visível a olho nu. Há pouco, escrevi um post sobre o que presenciei no Dia dos Namorados de 2012 no Facebook: pessoas prestes a se separar fazendo declarações apaixonadas publicamente nas suas timelines, inundando os feeds dos amigos com sentimentos inflacionados. Como disse no post, não acho que essas pessoas estivessem sendo cínicas, apenas se inserindo na narrativa geral do “Dia dos Namorados no Facebook”. Elas não estavam imitando nada do Manoel Carlos ou do Woody Allen – mas as narrativas sub-amadoras de suas turmas de amigos, que também estavam fazendo declarações parecidas, num processo curioso de retroalimentação industrial. Já que passamos muito mais tempo recebendo sinais das narrativas sub-amadoras de amigos do que das narrativas profissionais de filmes, seriados e livros, é natural que as primeiras exerçam uma influência maior no jeito como construímos as nossas próprias narrativas sub-amadoras.

Pesa também, nesse sentido, o fato de que as narrativas sub-amadoras estão cada vez mais parecidas com as narrativas amadoras ou profissionais. Mesmo que nossos roteirozinhos safados do dia-a-dia não sejam páreo para um “Sopranos”, um “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”, as fotos de férias e os pedidos de casamento em vídeo sempre tentam emular um pouco de Hollywood e os filtros de fotografia tem ajudado nessa aproximação. Também não deixemos de notar que a tela que usamos para construir e consumir nossas narrativas sub-amadoras é a mesma onde assistimos seriados e filmes, ouvimos música ou lemos livros.

O que ganhamos ou perdemos com isso tudo, ainda é cedo para dizer. Assim como as pessoas influenciam-se umas às outras na adoção de ondas de comportamento digitais, elas também se cansam com maior rapidez e pulam de uma mania à próxima com a agilidade de uma notificação de instant messenger. Embora as estejamos usando como linguagem interpessoal, não acho que as narrativas sub-amadoras vão substituir integralmente as narrativas profissionais, pelo contrário. A explosão dos roteirozinhos safados que espalhamos via redes sociais no fim só destaca as histórias contadas profissionalmente em qualquer que seja o meio. Bem, essa ao menos é minha forma de enxergar o copo meio cheio. Porque, como diz outro trecho do McKee, agora para fechar: “Estórias falsas e defeituosas substituem substância por espetáculo, verdade por artifícios. (…) Quando uma sociedade experimenta repetitivamente pseudoestórias ocas e envernizadas, ela se degenera. Precisamos de sátiras e tragédias verdadeiras, dramas e comédias que iluminem os cantos mais sombrios da psique humana e da sociedade. Senão, como Yeats avisou, ‘o centro não pode suportar’.”

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Leia também: Nossas Narrativas.

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Imagens: Gratisography & Picjumbo.

O lado mágico de crescer

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Esse final de semana terminei de ler o volume encadernado dos quatro números que deram origem ao universo Livros da Magia, criado por Neil Gaiman. Aos não-iniciados, um rápido resumo: é uma mini-série que trata da introdução de um garoto de 12 anos, Timothy Hunter, ao vasto mundo da magia através de uma tour guiada por quatro outros personagens de quadrinhos ligados ao misticismo. Aos quatro, que compõem um grupo, cabe não apenas a missão de informar Tim de que ele é algo como um predestinado à magia, como também descortinar as maravilhas e os perigos mortais que o espreitam ao escolher viver como um mago contemporâneo. A mini-série termina sem Tim decidir. Os episódios se fecham, mas não a história. Gaiman é um escritor notório e devidamente reconhecido por sua habilidade na criação de universos ricos, de uma generosidade narrativa sem tamanho. Qualquer um que pegue a trama a partir do final da mini-série tem caminhos de sobra para explorar por toda uma vida.

Livros da Magia, na verdade, é uma história  sobre  ritos de  passagem e sua riqueza está também na forma como inverte a lógica popular que acompanha esse conceito. Em geral, diz-se que a saída da infância e a entrada na vida adulta é um período de desencantamento, de fixar os pés no chão, de abraçar o que é concreto e sólido, de deixar de besteira. Em Livros da Magia, o recado subjacente é virado do avesso. A suposta inocência infantil de Tim é convidada a se retirar não para dar lugar a um mundo compreensível e dominável, muito antes pelo contrário: o crescer é apresentado como uma miríade de reinos que beiram o insano. Entendo que não há nada  de fantasioso nessa  proposição. Pelo que tem me constado, crescer é bem mais parecido com isso do que com a ideia de  desencantamento. Crescer é mágico – não no sentido de um deslumbramento colorido, de fadas madrinhas, poções mágicas e varinhas de condão, mas no sentido de que você se mete em situações mais bizarras do que poderia imaginar quando mais jovem, lida com demônios  assustadores (os seus próprios), se mete em lugares mal assombrados, dá de cara  com ogros por aí – aliás, frequentemente se torna um.

Há seis anos sou padrasto e ano passado me tornei pai. Essas também são experiências mágicas e de uma forma que contraria o clichê que a cultura popular vende de magia. A rotina com um bebê, por exemplo, não é mágica por ser cheia de momentos coloridos e inebriantes e sim porque mexe com energias intensas: quase todos os dias parece  que passou um poltergeist pela casa, volta e meia você se vê coberto por substâncias esquisitas (mais ou menos como retratado em Caça-Fantasmas), objetos somem e se  quebram  sem explicação, pra não falar de todos os deuses e religiões que você invoca quando não quer que a criança acorde. Também é mágico ser praticamente obrigado a desconstruir verdades que você construiu tão dedicadamente, e fazer isso mês após mês, sentindo-se nauseado e meio pirado com a sucessão caleidoscópica de pequenos universos que vão se abrindo – alguns curiosos e cativantes, outros francamente desesperadores.

Enfim, eu sempre penso como é que meus pais criaram três filhos em uma época e em condições bem mais adversas, ou então nos milhões de famílias brasileiras que dão um jeito, a duras penas, de alimentar, educar e cuidar dos seus. Aí, só posso concluir: pra realizar a tarefa mais comum e ordinária nessa terra, que é simplesmente tocar o barco da vida em família, o cara tem realmente que ser mágico.

198 formas não-violentas de fazer uma revolução

2013-09-12 20.57.23

Assisti ontem “Como Começar uma Revolução”, documentário inglês sobre o trabalho do especialista em ação não-violenta Gene Sharp. Americano e militante pacifista, ele se recusou a participar da Guerra da Coréia nos anos 50, foi preso por isso e a partir daí dedicou a vida a pesquisar formas de derrubar governos sem a necessidade do uso de violência. Em 1993, ele publicou “Da Ditadura à Democracia – Uma Estrutura Conceitual para a Liberação”, que compila métodos pacíficos de resistência e ação para grupos oprimidos. O livro já foi traduzido para mais de 40 línguas e é considerado uma peça intelectual importante em diversas insurgências ao redor do mundo.

O filme está disponível gratuitamente no NOW (vá na sessão NOW TV e procure pelos documentários do GNT). Alguma boa alma também gravou da NET essa versão com legendas em português e botou inteiro no YouTube:

Embora eu não conheça profundamente o trabalho de Sharp, achei extremamente inspiradora a disposição dele não apenas de estudar e disseminar essas técnicas, mas principalmente de ORGANIZÁ-LAS. Opressão, em toda e qualquer escala, de relações institucionais até pessoais, é uma situação que nos deixa frequentemente paralisados. Oferecer um caminho estruturado com tantas opções de linhas de ação quando se sente que não se pode fazer nada – e que a violência é a única saída – é realmente uma contribuição inestimável. Mais interessante ainda, Sharp não defende que os atos revolucionários pacíficos sejam uma simples alternativa à luta armada, mas sim a alternativa mais eficiente.

Alguém que postula isso nesse momento tenso em que estamos vivendo no mínimo merece uma hora da sua atenção, né? O Brasil  não está em  situação tão limítrofe quanto está a Síria ou quanto estavam o Egito e a  Tunísia  recentemente, mas ainda assim a compilação e a reflexão de Sharp se mantém válidas especialmente para ampliar o acesso à ideia de que existem alternativas  para ações violentas. Pelo que acompanho nas redes sociais, muita gente ainda acha que a melhor maneira de lidar com os  políticos  corruptos ou com a polícia violenta ou com os black blocs ou com os  comunistas  ou com os baderneiros ou com os  reacionários é  descer o cacete. Poucas  dessas pessoas efetivamente bateriam ou machucariam alguém, mas uma  quantidade  ainda assustadora  dissemina na internet  (e em papos de boteco) a ideia da violência como solução  plausível e eficiente.

 

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Algumas notas complementares:

* O pessoal do Hypeness recentemente escreveu um post falando um pouco mais sobre Sharp e o documentário. Dê um pulo aqui pra ler.
* O post inclusive indicam um link pra fazer download do livro dele em português gratuitamente.
* Eu já tinha lido por aí sobre Sharp, mas foi “Como Mudar o Mundo” do John Paul Flintoff que me fez ir atrás de mais material. Esse livreto faz parte de uma série da School of Life e saiu em português no Brasil pela Objetiva, que colocou um bom trecho pra baixar em PDF. Basta clicar aqui com o botão direito e baixar.

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Curioso pra saber quais são os 198 métodos? Peguei a lista no MerdTV.

OS MÉTODOS DE PROTESTO NÃO VIOLENTOS E PERSUASÃO

Declarações formais

1. Discursos públicos
2. Cartas de oposição ou de apoio
3. Declarações de organizações e instituições
4. Declarações públicas assinadas
5. Declarações da acusação e de intenção
6. Comunicações de petições em Grupo ou em massa

Comunicação com uma audiência mais ampla

7. Slogans, caricaturas e símbolos
8. Banners, cartazes e comunicações exibidas
9. Folhetos, panfletos e livros
10. Jornais e revistas
11. Discos, rádio e televisão
12. Escritas com fumaça no céu ou na terra

Representações em grupo

13. Delegações
14. Prêmios satíricos
15. Grupos de lobby
16. Piquetes
17. Simulacros de eleições

Atos públicos simbólicos

18. Exibição de bandeiras e cores simbólicas
19. Uso de símbolos
20. Oração e culto
21. Entrega de objetos simbólicos
22. Nudez em protesto
23. Destruição de propriedade própria
24. Luzes simbólicas
25. Mostra de retratos
26. Pintura como forma de protesto
27. Novos sinais e nomes
28. Sons simbólicos
29. Reclamações simbólicas
30. Gestos rudes

Pressões sobre os indivíduos

31. “Atormentar” funcionários
32. “Insultar” funcionários
33. confraternização
34. Vigílias

Teatro e música

35. Sketches cômicos e brincadeiras
36. Desempenho de jogos e música
37. Canto

Procissões

38. Marchas
39. Desfiles
40. Procissões religiosas
41. Peregrinações
42. Cortejos

Homenagem aos mortos

43. Luto Político
44. Simulacros de funerais
45. Funerais demonstrativos
46. Peregrinação a locais de sepultamento

Assembleias públicas

47. Assembleias de protesto ou de apoio
48. Reuniões de protesto
49. Reuniões camufladas de protesto
50. Invasões de aulas

Retirada e renúncia

51. Abandono de recinto
52. Silêncio
53. Renúncias a homenagens 55
54. Virar as costas

MÉTODOS DE NÃO COOPERAÇÃO SOCIAL

Ostracismo de pessoas

55. boicote Social
56. Boicote social seletivo
57. greve de sexo
58. Excomunhão
59. Interdições

Não cooperação com os eventos sociais, costumes e instituições

60. Suspensão de atividades sociais e esportivas
61. Boicote a assuntos sociais
62. Greve estudantil
63. Desobediência Social
64. Retirada de instituições sociais

Retirada do sistema social

65. Permanência em casa
66. Não-cooperação pessoal total
67. Fuga de trabalhadores
68. Santuário
69. Desaparecimento coletivo
70. Emigração em protesto (hegira)

OS MÉTODOS DE NÃO COOPERAÇÃO ECONÔMICA:

(1) BOICOTES ECONÔMICOS

Ação por parte de consumidores

71. boicote de consumidores
72. Não-consumo de mercadorias boicotadas
73. Política de austeridade
74. Retenção de aluguel
75. Recusa de alugar
76. boicote nacional de consumidores
77. Boicote internacional de consumidores

Ação por parte dos trabalhadores e produtores

78. Boicote de Trabalhadores
79. Boicote de produtores 56

Ações por intermediários

80. Boicote de Fornecedores e manipuladores

Ação de proprietários e gerentes

81. Boicote de negociadores
82. Recusa a alugar ou vender imóveis
83. Locaute
84. Recusa de assistência industrial
85. “Greve geral” de comerciantes

Ação por parte dos titulares de recursos financeiros

86. Retirada de depósitos bancários
87. Recusa de pagamento de taxas, encargos e multas
88. Recusa de pagamento de dívidas ou de juros
89. Corte de fundos e de crédito
90. Recusa da receita
91. Recusa de dinheiro de um governo

Ação de governos

92. Embargo Doméstico
93. “Lista negra” de comerciantes
94. Embargo de vendedores internacionais
95. Embargo de compradores internacionais
96. Embargo de comércio internacional

OS MÉTODOS DE NÃO COOPERAÇÃO ECONÔMICA:

(2) GREVE

Greves simbólicas

97. greve de protesto
98. Paralização rápida (greve relâmpago)

Greves agrícolas

99. Greve de camponeses
100. Greve de trabalhadores agrícolas

Greves de grupos especiais

101. Recusa de trabalho impresso
102. Greve de prisioneiros
103. Greve de Artesãos
104. Greve Profissional

Greves industriais comuns

105. Greve de Estabelecimento
106. Greve de Indústria
107. Greve de Simpatia

Greves restritas

108. Greve detalhada
109. Greve de recusa
110. Operação tartaruga
111. Operação padrão
112. Informe de “doença”
113. Greve por demissão
114. Greve limitada
115. Greve seletiva

Greves multi-industriais

116. Greve generalizada
117. Greve geral

Combinações de greves e fechamentos econômicos

118. Hartal (fechamento geral)
119. Desligamento Econômico

MÉTODOS DE NÃO COOPERAÇÃO POLÍTICA

Rejeição da autoridade

120. Retirada ou contingenciamento de fidelidade
121. Recusa de apoio público
122. Literatura e discursos defendendo a resistência

Não-cooperação dos cidadãos com o governo

123. Boicote de corpos legislativos
124. Boicote às eleições
125. Boicote de emprego e cargos no governo
126. Boicote aos departamentos governamentais, agências e outros órgãos
127. Retirada de instituições de ensino governamentais
128. Boicote de organizações apoiadas pelo governo
129. Recusa de assistência aos agentes da lei
130. Remoção de sinais próprios e marcadores
131. Recusa em aceitar funcionários nomeados 58
132. Recusa a dissolver as instituições existentes

Alternativas dos cidadãos à obediência

133. Respeito relutante e lento
134. Não-obediência na ausência de supervisão direta
135. Não-obediência Popular
136. Desobediência disfarçada
137. Recusa de uma assembleia ou reunião dispersar-se
138. Ocupação sentada
139. Não-cooperação com o serviço militar obrigatório e deportação
140. Ocultação, fuga e identidades falsas
141. Desobediência civil a leis “ilegítimas”

Ação de funcionários do governo

142. Recusa seletiva de assistência por assessores do governo
143. Bloqueio de linhas de comando e informações
144. Retardamento e obstrução
145. não-cooperação administrativa geral
146. Não-cooperação judiciária
147. Ineficiência deliberada e não-cooperação seletiva de agentes da lei
148. Motim

Ação governamental doméstica

149. Evasões semilegais e atrasos
150. Não-cooperação por unidades governamentais

Ação governamental internacional

151. Mudanças na representação diplomática e outras representações
152. Atraso e cancelamento de eventos diplomáticos
153. Retenção do reconhecimento diplomático
154. Rompimento das relações diplomáticas
155. Retirada de organizações internacionais
156. Recusa de participação em organismos internacionais
157. Expulsão de organizações internacionais

OS MÉTODOS DE INTERVENÇAO NÃO VIOLENTA

Intervenção psicológica

158. Auto exposição aos elementos
159. Jejum:
(a) Jejum de pressão moral
(b) Greve de fome
(c) Jejum Satyagrahica
160. Julgamento reverso
161. Assédio não violento

Intervenção física

162. Ocupação sentada
163. Ocupação de pé
164. Ocupação de meios de transporte
165. Ocupação de rios
166. Ocupação de usinas
167. Ocupação rezando
168. Ataques Não violentos
169. Bombardeios aéreos não violentos
170. Invasão não violenta
171. interjeição não violenta
172. Obstrução não violenta
173. Ocupação não violenta

Intervenção social

174. Estabelecimento de novos padrões sociais
175. Sobrecarga de instalações
176. Interferência retardatoria
177. Intervenção com discursos
178. Teatro de guerrilha
179. Instituições sociais alternativas
180. Sistema alternativo de comunicação

Intervenção econômica

181. Greve reversa
182. Greve com permanência
183. Ocupação de terra não violenta
184. Desafio a bloqueios
185. Falsificação politicamente motivada
186. Compra preventiva
187. Apreensão de bens
188. Dumping
189. Patrocínio Seletivo 60
190. Mercados alternativos
191. Sistemas de transporte alternativo
192. Instituições econômicas alternativas

Intervenção Política

193. Sobrecarga dos sistemas administrativos
194. Revelação da identidades de agentes secretos
195. Busca de prisão
196. Desobediência civil de leis “neutras”
197. Trabalho sem colaboração
198. Dupla soberania e governo paralelo

Estamos vivendo uma crise de interface com o usuário

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O conceito de interface com o usuário não é exclusivo das mídias digitais, mas seu significado nessa área está me ajudando a emoldurar mais racionalmente tudo isso aí que está acontecendo. Dentro do design industrial e da computação, a interface com o usuário é todo recurso que permite o diálogo entre a máquina e a pessoa. O mouse do computador é uma interface, bem como a aoarência gráfica dos programas, as telas, botões, menus, tudo aquilo que permite que a gente comande determinado programa. Na internet, a interface de um site é a tradução gráfica de uma montanha interminável de códigos ininteligíveis para a maior parte dos usuários.

Uma interface é crucial para a interação entre as partes e suspeito que o que nos falta, como coletivo nacional, são diversas interfaces em diferentes níveis. Por exemplo, na falência do voto como uma interface com o poder público constituído, restou retomar uma milenar interface política: a rua. As manifestações presenciais no espaço público transformam milhares de pessoas em pixels que se organizam em diversas telas – na TV, na internet, nos visores de câmeras, nas esquadrias das janelas, nas fotos de jornais e revistas. Algumas pessoas, versadas no alfabeto que está sendo usado pelo grupo heterogêneo de manifestantes, compreenderam rapidamente a mensagem consolidada nessa interface. Outras, alheias a uma linguagem que vinha sendo gestada há pelo menos uma década, demoraram ou estão estão demorando a entender.

Claro, o primeiro sinal da ineficiência de uma interface é a perplexidade. Como assim? Onde aperta? Não estou entendendo… O segundo sinal é a impaciência, seguido de perto pelo terceiro, a irritação. Se a situação persiste sem solução, o quarto sinal é a violência. Computadores, caixas eletrônicos e telefones já apanharam muito por conta dos defeitos nas suas interfaces. A interface defeituosa é o diálogo obliterado e um convite à agressividade. A boa interface produz empatia e conduz ao entendimento mútuo.

Existem muitos trabalhos em muitos níveis a serem feitos em interfaces a partir da explosão de manifestações. Existe o nível da política institucionalizada, nos corredores dos três poderes. Existe o nível da discussão teórica, que flana entre as universidades, os institutos, os escritórios particulares de intelectuais, as redações de alguns veículos e os quartos dos articulistas independentes. Existe o nível dos movimentos sociais e suas organizações. Existe as ruas e existe a massa da população debatendo em paradas de ônibus, em bares, nos seus empregos. E existe a internet, o âmbito que até agora tem se provado como o melhor complemento ao trabalho das ruas pela possibilidade congênita e única de replicar a diversidade de anseios e de pontos de vista.

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Luli Radfahrer, em artigo publicado na Folha de São Paulo, destaca a importância da internet na reestruturação do diálogo no país. Bem utilizada, ela é, óbvio, a interface da sociedade em rede. E isso deveria incluir o Governo. A rede não serve apenas para convocar manifestações, compartilhar artigos e passar adiante vídeos e imagens dos protestos. Ela também se presta para duas coisas: estabelecer um canal mais próximo entre Governos e cidadãos e para instituir o choque de transparência que o país precisa. Mas não está sendo utilizada, com raras exceções, para isso. O conceito de dados públicos e de serviços ao cidadão via mídias digitais, na imensa maioria dos casos, naufraga em sites e aplicativos mal projetados, antipáticos e cheios de restrições. Cabe lembrar que não estamos falando de luxos, de brinquedinhos e distrações, mas recursos que poderiam reduzir filas, custos, tempos de espera, número de funcionários públicos e níveis de separação entre Governos e cidadãos.

Em artigo no Globo, Daniel Galera fez um chamado interessante: retornar a publicidade governamental ao seu significado original, que era mais relacionado ao conceito de transparência. As campanhas publicitárias do Governo, hoje, seguem a cartilha do mercado publicitário e funcionam dentro de uma lógica que exige o aporte de milhões de reais para a criação e veiculação de campanhas cuja eficiência, em muitos casos, precisa ser seriamente questionada. É dinheiro público que poderia ser aplicado em outros setores mais urgentes. O escritor propõe que a publicidade oficial deveria se comportar mais como prestação de contas e, eventualmente, como comunicação de conteúdos essenciais. Hoje, ela tem cara (e custo) de venda de produtos industrializados de massa. A meu ver, isso é, em parte, necessidade contextual: o Governo, de fato, concorre pela atenção das pessoas na grande mídia com a Coca-Cola e o Itaú. Mas isso também é, por outro lado, o resultado de um sistema viciado que atende a tantos interesses privados que se torna tabu questionar.

As duas propostas, de Luli e Galera, se complementam. Constrói-se uma nova utopia a guiar nossas reivindicações: com uma estratégia de transparência radical via rede, porém intermediada por interfaces simplificadas e atraentes, os Governos poderiam abrir mão da caríssima publicidade oficial em meios de comunicação de massa. Essa lógica também libertaria o Governo das amarras políticas com os grandes veículos – no Brasil, ser anunciante de porte garante algum poder de barganha no noticiário.

A ideia de unir transparência radical com boas interfaces usando a internet como um canal prioritário de conexão entre Governos e cidadãos se apoia também no papel que a rede está tendo na vida cultural dos brasileiros. Já faz alguns anos que ela está mudando, em alguns casos radicalmente, a forma como as pessoas constróem suas vidas. Já não assistimos futebol e novela como antigamente, não encontramos namorados e namoradas como antigamente, não nos comunicamos com nossas famílias como antigamente, não comparamos preços e compramos como antigamente, não criamos e ouvimos música como antigamente, não vamos ao banco como antigamente… Por que, então, vamos continuar nos relacionando com nossos representantes oficiais como antigamente?

Claro, faço questão de repetir: a proposta (que nem é minha, vem sendo martelada por intelectuais da cultura digital, estou apenas engrossando o coro) tem cara de utopia e exige uma mudança radical de olhar e de cultura. Mas entendo que é pra isso que as pessoas estão indo pra rua. Entendo que eu nem deveria sentar para escrever se fosse para ficar remoendo as velhas soluções.

***

Imagens: Kirra Jaminson

Quando a fruta cai longe do pé

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Abaixo está a apresentação do escritor Andrew Solomon resumindo seu mais novo livro no TED MED. “Far from the Tree” é o resultado de dez anos de pesquisas e entrevistas com pais que tiveram filhos diferentes – do que esperavam e do que a sociedade em geral espera. Entre os entrevistados, estão pais que tiveram filhos surdos, gays, com nanismo ou que participaram do massacre das escola em Columbine, nos Estados Unidos. A visão do Solomon é a seguinte: diferente do que o senso comum propaga, em geral os pais tem seu amor impulsionado pelas dificuldades (e não erodido); do ponto de vista dos filhos, as dificuldades não são apenas limites, mas também parte da construção de uma identidade e cultura próprias.

Eu ainda não li o livro, mas já li ou ouvi diversas entrevistas com Solomon e recomendo fortemente o vídeo. Uma pena que está apenas em inglês, pois mereceria chegar a mais gente. Em breve, pretendo ler e resenhar o livro aqui.

A foto que abre mostra Solomon, seu marido e seu filho. Tirei ela desta resenha do Newy York Times.

Pagando por Sexo de Chester Brown

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Lançado no ano passado no Brasil, Pagando por Sexo é um romance-estudo-resportagem-autobiografia no qual o canadense Chester Brown conta detalhadamente como chegou à decisão de se relacionar sexualmente apenas com prostitutas, abandonando a ideia do amor romântico e do “sexo gratuito” como parte inerente de uma relação afetiva. O tema é cabeludo, mas a habilidade de Brown como narrador e ilustrador, já reconhecidas no meio literário, resolve tudo. Além de tornar uma reflexão cultural interessante e divertida, Pagando por Sexo enfileira causos e argumentos (inclusive com uma polpuda bibliografia) para sustentar moralmente e socialmente a escolha de seu autor.

Questões sexuais à parte, o que mais me chamou a atenção no livro foi o fato de Brown ter construído e divulgado formalmente uma via pouco usual de relação com mulheres. Não me interessa discutir os motivos da escolha ou investigar suas emoções, mas sim o fato notável dele ter aberto esse espaço, ainda que isso tenha acontecido em um país como o Canadá, que me parece ser mais tolerante à diversidade. Pagando por Sexo, nesse sentido, é fascinante.

Dias depois, lendo “Cultura, Um Conceito Antropológico” de Roque de Barros Laraia (clique aqui com o botão direito pra baixar em PDF), me deparei com esse parágrafo abaixo. É uma pequena ode à diversidade cultural do ser humano e na hora pensei que descreve bem o que senti lendo Pagando por Sexo:

“Não se pode ignorar que o homem, membro proeminente da ordem dos primatas, depende muito do seu equipamento biológico. Para se manter vivo, independente do sistema cultural ao qual pertença, ele tem que satisfazer um número determinado de funções vitais, como a alimentação, o sono, a respiração, a atividade sexual etc. Mas, embora estas funções sejam comuns a toda humanidade, a maneira de satisfazê-las varia de uma cultura para outra. É esta grande variedade na operação de um número tão pequeno de funções que faz com que o homem seja considerado um ser predominantemente cultural.”

Não se deveria cobrar de todos que aceitem ou apreciem a diversidade. Contemplá-la como fato já seria um belo começo.