O Círculo: talvez o livro mais importante de 2014

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O ano já se encaminha para o final, mas ainda dá tempo: O Círculo, romance de Dave Eggers que narra a ascensão de uma funcionária exemplar na empresa de tecnologia mais criativa do mundo, pode ser lido sem pressa em poucos dias, digamos, entre o Natal e o Ano Novo. Não que sua atualidade tenha data de validade tão curta ( o livro é de 2013!), mas defendo que este livro, mesmo com seus pequenos defeitos literários, talvez seja um importante marco na cultura contemporânea. O que Eggers fez não é pouco – ele escreveu a fábula definitiva que encerra um período de ingenuidade sobre o que o universo simbólico do Vale do Silício tem a oferecer para o mundo. Quanto antes passarmos isso a limpo, melhor.

A história de Mae Holland, personagem principal do romance, é facilmente reconhecível mesmo por quem não acompanha o noticiário especializado de tecnologia. Recém formada e enfiada em uma repartição pública do interior da Califórnia, Mae é resgatada de sua vidinha ordinária por uma ex-colega de faculdade que lhe devia alguma fidelidade. A dívida é paga com juros. Annie, a amiga socialmente bem posicionada de Mae, faz parte da elite do Círculo, o Google do universo criado por Eggers, que revolucionou a vida online unificando todos os perfis e identidades virtuais no TruYou, “uma conta, uma identidade, uma senha, um sistema de pagamento por pessoa” no qual se usa “seu nome verdadeiro, que está vinculado a seus cartões de crédito, seu banco”, ou seja, “um botão para o resto da sua vida online”. A sede do Círculo, situado em uma cidade fictícia próxima a San Francisco, é tudo aquilo que Mae – e boa parte dos jovens hoje – quer de um ambiente de trabalho: uma Shangri-la moderna, com calçadas pavimentadas com pedras contendo mensagens inspiradoras, comida orgânica gratuita, shows e espetáculos diários com grandes artistas no refeitório, festas temáticas semanais, um hotel interno para quem não quer dirigir de volta pra casa depois do serão, medicina preventiva baseada em sensores intracorporais e big data, além de uma demografia clara no recrutamento (só jovens bacanas e interessantes entram para O Círculo). É nessa empresa, que Eggers parece ter construído a partir de uma pesquisa sobre “onde as pessoas de 2014 gostariam de trabalhar”, que Annie arruma uma vaga para sua ex-colega da graduação.

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[o autor]

Mae começa por baixo, na área de atendimento ao cliente, e primeiro estranha a intensidade social dos funcionários do Círculo, que vivem o campus como se fosse o único lugar do mundo onde vale a pena estar. Mas, rapidamente, ela não só é seduzida pela vida no Círculo como engata uma trajetória de protagonismo pagando alguns preços que Eggers – mas não Mae – considera caros. Sua privacidade, sua relação com os pais, com a amiga Annie e com qualquer coisa que não seja a filosofa essencial dos Três Sábios, o board que preside O Círculo, tudo vai sendo deixado para trás em nome de um avanço radical em busca da transparência digital definitiva. O livro se desenrola na sua dupla função, de sátira e thriller. A meio caminho do final, um forte suspense tempera a divertidíssima crônica de costumes que cobre praticamente todos os exageros que viemos cometendo nos últimos 15 anos no uso indiscriminado e experimental do que quer que a indústria da tecnologia sacuda na nossa cara. Os ruídos de comunicação gerados pelo contato virtual, a carência emocional convertida dados de audiência pessoal, a autoexposição que busca soterrar angústias profundas, o reality show que pulou da TV pras nossas timelines – O Círculo de Eggers parece mais um catálogo das pequenas insanidades cotidianas da hipermodernidade.

Apesar de algumas forçadas de barra narrativas (bem sublinhadas por essa resenha do NYT) e da tradução para o português que não tem como dar conta da mania dos personagens de falarem discursando como se estivessem no TED Talks (algo que flui melhor em inglês), O Círculo tem o gigantesco mérito de expandir para uma audiência mais mainstream linhas de discussão que até então viviam restritas aos textos de especialistas como Jaron Lanier, Evgene Morozov e Douglas Rushkoff. O poder de influência das empresas de tecnologia sobre a sociedade via ferramentas e códigos culturais, sua tendência monopolista disfarçada de simpatia é quase amor, sua relação ambígua com Governos e políticas públicas, seu impulso de pedir transparência aos usuários enquanto trabalham sob uma redoma frequentemente opaca, nada disso interessa ao público médio na forma de ensaios político-culturais. Nesse sentido, O Círculo funciona como um cavalo de tróia – você está lá, se divertindo com as patuscadas de Mae Holland na prosa quase televisiva de Eggers e, quando percebe, sua mente foi inoculada com uma série de questionamentos absolutamente sérios e relevantes sobre onde fica o limite entre a disrupção tecnológica útil e a demência capitalista-digital que mascara emoções destrutivas com design minimalista e responsivo.

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Antes de escrever esse post, me perguntei se ele seria relevante no contexto brasileiro, uma vez que a história de O Círculo depende em parte de conhecermos um pouco do funcionamento do Vale do Silício. Mas então lembrei que há pouco tivemos uma novela das sete com a mesma temática; que revistas mainstream como Época Negócios, Exame PME e Veja tem destilado essa filosofia em suas páginas há anos; que a morte de Steve Jobs comoveu Luciana Gimenez; e que mesmo aqui, em Porto Alegre, empresários de todos os portes e idades parecem querer emular o jeito de fazer negócios (e de se exibir) de San Francisco. Onde houver uma empresa que pensou em colocar (ou colocou) um videogame na área do cafezinho pra se sentir mais moderna, a leitura de O Círculo se faz necessária.

Conforme escrevi nos posts Softer, Worser, Slower, Weaker e A Perigosa Cultura do Como Mudar o Mundo e Sua Vida, estamos passando por um momento de deslumbramento com práticas empresariais supostamente modernas mas que, muitas vezes, tem por trás as mesmas intenções e valores de sempre – crescer e conquistar território. O fato de que essas intenções hoje são mais facilmente disfarçadas com propósitos “sociais” e slogans “inspiradores” é algo que deveria nos incentivar a ter sempre um pé atrás e uma sobrancelha levantada com empreendedores hiperbólicos. Só assim descobrimos, por exemplo, que a narrativa da startup que nasce em uma garagem no Vale do Silício é, em geral, mais mito do que de verdade. E que muitos empresários da era digital podem ser considerados, como escreveu Fernand Alphen, “robber Barons modernos”, alcunha historicamente reservada a latifundiários inescrupulosos na Europa medieval ou a industriais vorazes nos Estados Unidos do século XIX. Só assim mantemos uma atitude saudável de nos perguntarmos, como fez a Bia Granja, se não devemos deixar de usar um app super popular e útil (e com uma aura suuuper moderna) devido aos valores questionáveis de seus criadores.

O Círculo é o livro que faltava pra condensar todas essas suspeitas em uma obra de apelop pop e que você pode levar embaixo do braço lembrando que uma empresa mercantilista e messiânica não deixa de ser mercantilista e messiânica só porque sua sede parece um café do Brooklyn e seu discurso corporativo soa como um vídeo de autoajuda. Tudo bem se você quer conquistar o mundo com suas ideias, seu dinheiro e sua energia. Mas, como bem resume um ditado popular, não vem me contar que eu não sou dinheiro.

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Outra coisa: de certa forma, achei que O Círculo é a versão século XXI de Microservos, romance de 1995 escrito por Douglas Coupland (o mesmo de Geração X). Microservos conta a história de um grupo de nerds hardcore com imensos talentos (e dificuldades de relacionamento do mesmo tamanho) que deixam a Microsoft para embarcar em um projeto semi-autoral. É bem mais emocional e poético do que O Círculo (ao estilo de Coupland), mas vale comparar os dois pra sentir o papel da tecnologia e seus personagens no meio da década de 90 (ainda marginais e desajeitados) e quase 20 anos depois (no centrão da cultura pop).

Microservos saiu no Brasil na época pela Nova Fronteira com uma capa idêntica à versão original (aí de cima) e é super difícil de achar, mesmo em sebos. Eu ainda tenho o meu. 🙂

Imagens: Be Nourished e Busty Teacher.

O dna dos sites mais acessados do mundo

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Segundo o portal de medição Alexa, Google, Facebook e YouTube foram os 3 sites mais visitados do mundo no último mês. Por mais que essa informação tenha cara de óbvia e possa despertar bocejos, acho irresistível dar um passo adiante e perguntar: não é fascinante que os 3 sites mais visitados do mundo sejam também manifestações claras da cultura americana, do seu projeto de poder e do seu apelo sedutor sobre o planeta?

O Google é um ótimo exemplo. Ele é a versão digital do arquétipo do explorador americano. Como o caubói e o astronauta, seu campo de ação é um tipo de oeste selvagem ou de espaço sideral. O buraco negro dos links da internet é o horizonte infinito no qual ele mergulha em missão civilizatória munido de coragem, sagacidade e tecnologia. E, como bom herói, nunca volta de mãos abanando. Vem pra casa em segurança, trazendo algo que faça sentido da imensidão e nos contando da aventura perigosa com um sorrisinho no canto da boca e uma tirada bem humorada. Pensando bem, é impressionante que o Google não tenha sido fundado pelo Clint Eastwood.

O Facebook é a mesma coisa. A rede social mais famosa do sistema solar corporifica a obsessão americana por construir e investigar celebridades de forma sistemática e escalonável. Aplicando conceitos da física quântica ao universo das revistas de fofoca, o Facebook permite que a gente seja celebridade e paparazzi simultaneamente, inclusive que a gente se torne celebridade sendo auto-paparazzi ou se torne paparazzi porque nossas próprias fotos ficaram célebres. As combinações dessa equação são infinitas, enlouquecedoras e tão americanas quanto a ideia de que você pode – e deve – aquecer a economia de um país criando um estilo de vida baseado na vida de celebridades.

O YouTube segue um padrão parecido. A influência dele corresponde à influência do cinema dos Estados Unidos sobre a cultura mundial. Apesar de ter sido os franceses que criaram o cinema, foram os americanos que criaram uma cultura popular de cinema: a paixão pela imersão em uma tela, pela ação cadenciada, pela história contada em uma estrutura previsível de três atos, pela iconografia que transborda das telas para as lojas. Com o YouTube, aconteceu algo parecido, em direção contrária – foi a vida que passou a transbordar de volta para as telas. Mas a contaminação já havia acontecido, pois o incauto que empunha a câmera do celular há décadas já vem com horas de linguagem de cinema & TV embarcada na própria mente.

Se todos nós levamos para o resto da vida as impressões mais fortes da infância, não ia ser diferente com a internet. Ela nasceu americana e, mesmo que tenha já saído da casa dos pais há horas, carrega por aí os genes e os maneirismos que absorveu nos primeiros anos de vida. Claro que esperamos que ela se beneficie do que está aprendendo com seus giros pelo mundo, se torne realmente mais democrática culturalmente. Mas nunca se sabe. Há quem diga que, na medida em que envelhecemos, vamos ficando ainda mais parecido com nossos progenitores. Só falta mesmo é a gente, daqui uns anos, ter que conviver com uma internet americana velha, republicana, ranzinza e conservadora.

Tomara que a internet faça terapia.

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Imagem: San Jose Library

Google em botecos: um estrago

O Google sem dúvida é um das invenções mais incríveis e úteis das últimas décadas. Mas ele também tem seu lado estraga-prazeres. Principalmente quando você junta o Google com o acesso à internet pelo celular e uma mesa de bar. Isso porque geralmente uma boa parte do tempo que se passa com os amigos no boteco é investido em discussões sem sentido e sem objetivo. E, pra jogar conversa fora, é fundamental que a mesa seja ignorante em determinados assuntos.

Com o acesso ao Google no celular, discussões que ocupariam a noite inteira de especulação criativas podem acabar em poucos minutos quando alguém acha uma resposta lógica e exata na internet. Pior ainda: além de acabar com a criatividade na mesa, ainda tem gente que fica com a ilusão de que sabe alguma coisa só porque achou um site no Google.

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Texto de um dos programentes Minimalismo que eu faço pra Rádio Oficial do Verão.

Imagem: daqui.

Amigos, amigos, redes à parte

De todos os comentários, dúvidas, desconfianças, elogios, críticas, pés atrás, de tudo que já passou pela minha cabeça e pela mídia (a social e a não social) sobre o Google+ até agora, o que mais me chamou a atenção foi o fato de que O GOOGLE SENTE QUE PRECISA EXPLICAR PRA NÓS O QUE SIGNIFICA A PALAVRA “AMIGOS”.

De novo: o Google (o Google!) quer nos ensinar (ou lembrar) o que significa amizade.

Isso não é pouca coisa. É bastante significativo e só não escrevo mais sobre isso porque meio que já escrevi ano passado no post Meus Amigos do Facebook.

Se estiver a fim, vai lá. Amigo.

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Update. Meu colega @azeredo temperou um pouco minha ingenuidade com a seguinte observação: não é que o Google quer nos EXPLICAR o que é amizade. O que ele quer é SABER quem são nossos amigos próximos. E família. E etc…

TV did not kill web stars

Esse comercial da Vostu com a Ivete é o mindfuck definitivo do marketing digital brasileiro. Há anos que artigos em revistas e sites especializados, bem como palestras evangélicas, vem detonando a televisão como um meio válido de publicidade. Anunciar na TV, para fundamentalistas digitais, é símbolo de incompetência. É tiro de canhão, desperdício, furto qualificado, diz-se. Não é preciso verba de mídia nem celebridades, o consumidor é a mídia, o que é bom viraliza-se naturalmente, declama-se.

Mas, tu vê só, o mundo dá voltas. Não defendo este ou aquele meio, vivo e trabalho em cima do muro (é de onde se tem a visão geral das coisas). Mas não deixa de ser engraçado ver empresas ícone do mundo digital experimentando um pouco com o mais (nos últimos tempos) mal falado dos meios. Dito isto, reforço: faz absoluto sentido a Ivete vendendo Megacity na TV (ainda que fechada, não vi na aberta). Ivete, TV e jogos sociais, é tudo mainstream. E brasileiro, pelo que sei, gosta de coisa mainstream. Cauda longa é consequência de mercados estabilizados e economicamente maduros, penso.

Mas o Ivete/Megacity não é a única. Desde o ano passado que a TV fechada vem sendo invadida por comerciais de empresas “da web”. Começamos pela mais recente, do Mercado Livre, que por sinal tem comerciais muito bacanas e um posicionamento espertíssimo:

E a Netshoes? Diz em alto e bom tom que “Você nasceu digital” e ela também.

O comercial do Chrome, sim, passou na Globo ano passado. Nada como um comercial da maior empresa digital do mundo passando no canal (ainda) mais visto do Brasil. Junção de canhões.

(Diga-se de passagem, em outubro de 2010 eu estava nos Estados Unidos e vi o Google anunciando a sua rede de conteúdo, seus banners, em página quádrupla no The New York Times – o autêntico cross-media.)

Um dos meus prediletos é o do Groupon (também do ano passado), porque ele explica o conceito de compras coletivas e define como “a nova febre da internet”:

O do SaveMe também é bem didático:

O do Buscapé vai um pouquinho mais longe:

No setor dos “regionais” e dos comerciais mais baratinhos, tem o Vaquinha Vip:

Esse do Peixe Urbano, por sua vez, é um deleite de subtexto e metalinguagem: a TV usada no fim do comercial é uma bem antiga, ainda por cima chamada pelo peixe de “aquário”.

Por último, um merchandising do Club Penguin no Disney Channel com direito ao apresentador vestido a caráter para uma festa medieval que iria acontecer dentro da rede social infantil da Disney, o popular e incrível Club Penguin.

Conclusão da história 1: se você trabalha com mídia, não precisa mais ter medo. TV está deixando de ser palavrão (como comentei aqui, gostar de TV é/já foi usado em alguns círculos pra ofender alguém).

Conclusão da história 2: em termos de cultura digital, é melhor sentar e ver a bagunça acontecer (e assentar de tempos em tempos) do que ficar bravateando por aí.

O poder dos ditados

Achado não é roubado e quem perdeu é relaxado. O ditado é antigo mas as questões que ele traz continuam atuais e polêmicas. Por exemplo, quase tudo que você encontra no Google pode ser considerado tecnicamente um achado. E achado no Google de fato não é roubado.

Mas, por exemplo, se você inventar de baixar um filme ou uma música sem pagar, saiba que muita gente na indústria do entretenimento não vai concordar que esse achado não é roubado. Na Inglaterra, você pode ser processado. Por outro lado, alguns defensores de direitos autorais mais flexíveis argumentam que os estúdios de cinema e as gravadoras foram… relaxados… por ainda não terem criado um modelo de negócios interessante pro consumidor de diversão digital – especialmente no Brasil.

Quanto aos usuários, a maior parte deles continua se baseando nessa lei antiga, mas de enunciado simples, claro e ainda contemporâneo: achado não é roubado e quem perdeu é relaxado. Quem discordar, precisa trabalhar pra arrumar um sisrtema melhor, com um enunciado que também seja simples e de fácil apelo popular.

Você pode até processar empresas e consumidores. Mas não pode processar um ditado.

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Post inspirado num dos programetes Minimalismo que eu faço pra Oi FM.

Todos os dias às 9h30 e às 13h45 no seu rádio ou na webradio.

Os limites da revolução

Enquanto se comenta a compra do Huffington Post pela AOL, vamos voltar alguns séculos no tempo e espanar o pó de uma edição de dezembro de 2010 da The New Yorker. Está lá um texto do jornalista James Surowiecki sobre a rejeição da oferta de compra do Groupon (principal site de descontos americano) pelo Google. A uma certa altura, depois de radiografar rapidamente a relação Google/Groupon e contextualizá-la na históra da internet, Surowiecki parte para defender um ponto de vista bastante interessante e que merece atenção: um dos trunfos do Groupon é ser um negócio old school em uma época na qual as virtudes dos novos modelos são cantadas como épicos.

Diferente de empresas que fizeram e fazem fortuna com estruturas enxutas e tecnologias que funcionam praticamente sozinhas (o sistema de buscas do Google, por exemplo, é em parte aprimorado pelas próprias buscas que empreendemos), o Groupon está pavimentando seu caminho à base de uma equipe bem mais vultosa (são 3.000 funcionários pra atender 40 milhões de usuários contra os 2.000 do Facebook que atende 600 milhões) e que precisa botar a mão na massa especialmente na área de vendas. O site do Groupon por sua vez, é relativamente simples, não dá grandes contribuições à história das ferramentas como fez o YouTube ou o Twitter, diz o jornalista da New Yorker.

Essa matéria – e esses fatos – soam familiares no momento em que a AOL, um dos players mais old school da internet, compra o Huffington Post, símbolo de uma era mais contemporânea. Ou será que essas categorias começam a não se aplicar mais? Talvez a bagunça do mundo pop tenha chegado ao mundo dos negócios e em breve o cenário das empresas de tecnologia vai parecer mais um set do 2ManyDjs ou do Girl Talk, com uma mistura esquizofrênica e pujante de décadas, estéticas, modelos e conceitos.

Tem gente que vem nos vendendo, nos últimos anos, a idéia de que só os grandes inovadores tecnológicos ficarão milionários e farão história. A história parece que está querendo rever essa idéia.

Sindicato dos Usuários do Facebook

Grande parte das ferramentas online gratuitas, como Facebook, o Google e afins, não são gratuitas à toa. Na verdade, a gente paga pelo uso com nossos dados e hábitos de navegação, que vão sendo colhidos à medida em que usamos a ferramenta e são valiosíssimos na venda de anúncios e links patrocinados. Por exemplo, cada vez que você faz uma busca no Google, você ajuda o buscador a refinar o seu motor e a entregar: a) resultados mais relevantes pra todo mundo b) um alvo mais certeiro para os compradores dos serviços pagos do Google, como links patrocinados. Eu usei o exemplo do Google porque é o mais fácil, mas com o Facebook é a mesma coisa.

Daí que o usuário do Facebook Richard Buchanam tirou a interessante idéia de que essa relação entre usuário e grandes corporações de tecnologia é desequilibrada. Segundo ele, a gente deveria seja pago pelos dados que as grandes companhias online usam, que talvez o serviço gratuito seja uma compensação abaixo do que valeríamos. Pra lutar por isso, Buchanam criou o Sindicato de Usuários do Facebook. Por enquanto, o Sindicato é mais uma idéia utópica do que uma organização, um conceito pra prestar atenção. Há dez dias, quando a matéria do Guardian foi publicada, o grupo tinha só 19 membros, hoje já tem mais de 1.000. Não vamos esquecer, então, que os gigantes da Internet também começaram assim, mais como um conceito, mais como uma idéia utópica do que como uma organização.

Nossas Narrativas

O psicanalista Contardo Calligaris esteve aqui em Porto Alegre na segunda pro Fronteiras do Pensamento. Eu não fui, mas minha mulher foi e o que ela me contou me deixou com idéias pipocando por tudo quanto é lado. Calligaris trouxe suas idéias a respeito da “ficção como linha de conduta pra inventar a vida”, um assunto que ele explorou dias antes em uma entrevista pra Zero Hora.

“Nossa subjetividade é fundamentalmente uma história, a história que nós contamos a nós mesmos, a história da nossa vida, digamos assim, e a história que contamos aos outros como sendo a nossa, eventualmente a que os outros nos contam como sendo a nossa e que no fundo é uma história só. E uma história que é construída de maneira sempre dinâmica. (…) É a vida como criação de uma narrativa e, portanto, regrada muito mais por uma necessidade estética do que ética.”

Bom, começa que eu acho linda essa noção da vida como uma história, não pelo aspecto poético, mas pelo aspecto prático de liberdade que esse conceito oferece. Nós somos educados a enxergar o universo dentro de termos objetivos e a reboque vão juntos todas nossas subjetividades. Pra deixar mais claro: vivemos como se existissem fatos concretos acontecendo em uma sequência temporal lógica e que tudo aquilo que cerca essa construção objetiva (nossas percepções, sensações, conceitos mentais, nossas memórias, etc) são uma mera narrativa da trajetória objetiva. E isso é tão pouco, é olhar a vida de forma tão afunilada, fecha muitas portas, tolhe a nossa liberdade de nos reconstruírmos.

A idéia atual é que somos fundamentalmente uma história que vamos compondo a partir do que acontece, mas também a partir das várias histórias com as quais cruzamos ao longo da nossa vida – as contadas por outros, as que lemos ou às quais assistimos e que constituem um imenso patrimônio das histórias possíveis.

A crença na concretitude dos fatos externos leva à criação da necessidade de encontrar concretitude na história interna. E é aí que perdemos nossa maior liberdade, ficando preso nas nossas identidades. O bonito no que o Contardo Calligaris frisa não é podermos nos narrarmos, mas sim lembrar que essas narrativas não estão – e nunca estarão completas. Elas são mais parecidas com um perfil de Orkut do que com um livro: são editadas constantemente à medida em que vamos nos relacionando com outras pessoas e entrecruzando nossos caminhos.

Somos essa história em progresso, uma maneira de traduzir a expressão “in the making”, algo que vai se fazendo. E isso é um traço dito “específico da modernidade”, o que é verdade apenas para os últimos 250 anos, e mesmo assim na cultura ocidental.

Hoje, se quisermos falar de um novo léxico das narrativas internas, vamos obrigatoriamente ter que passar pelas conversas de MSN, pelos SMS, pelos perfis do Orkut e pelos Fotolog. A cada novo scrap, a cada nova edição do perfil, a cada novo diálogo no MSN, vamos transformando nossos “fatos” em “narrativas”. Nesse processo, as peculiaridades de cada ferramenta desempenham um papel fundamental, moldando a forma como nos relacionamos não só com outras pessoas mas especialmente com a nossa própria narrativa interna.

Por exemplo, eu acho fascinante que a forma como os Orkuts, Fotologs e Facebooks da vida estão organizados nos fazem mudar o jeito como pensamos sobre nós mesmos. Preecher um profile, determinar níveis de privacidade, selecionar o que vai e o que não vai para os álbuns de foto, agregar aplicativos, escolher de que forma você vai usar a página de recados são todos diálogos internos que moldam não apenas o perfil que os outros vão ver mas também a forma como cada um de nós se vê. Não é preciso pensar muito para chegar à conclusão que grande parte das fotos digitais tiradas por aí hoje têm seu ângulo e seu conteúdo determinado pelo destino final de upload. E não vejo isso como problema. É um traço da cultura contemporânea.

Os perfis de redes sociais (ou qualquer outro tipo de banco de dados que gerenciamos, como a agenda do celular) estão lentamente transferindo sua arquitetura daquele software para o nosso software – a mente. Estamos internalizando esse tipo de pensamento, tornando-as a nossa forma coletiva de organização de dados.

O ponto aqui não é entrar numa paranóia orwelliana a respeito do Google e afins. Eu não estou nem aí pra isso. O ponto é a liberdade perante as nossas identidades. Seja emulando a estrutura dos folhetins, seja o editar repetido de perfis, o upload regular de fotos, os diálogos constantes no MSN ou as mensagens de SMS, o fato é que a nossa identidade e a nossa história não são estruturas fixas, o que oferece um amplo campo de possibilidades no que diz respeito a viver melhor.

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Imagens: Heather Horton.

Free por Chris Anderson por Conector


Mais uma bola dentro da Wired: depois de traduzir a lógica do comércio digital com a teoria de Long Tail e consolidar o jeito DDA como estamos consumido informação e entretenimento com o rótulo Snack Culture, agora é a vez da cultura da distribuição gratuita ser digerida e cuspida de volta sob a forma de um agradável viés pop.

Free é o artigo da última Wired que vai dar origem ao próximo livro de Chris Anderson, editor-em-chefe da revista e autor também da história toda do Long Tail. Ao lado do Malcom Gladwell, talvez o Anderson venha se firmando como um dos nomes mais interessantes do mundo do marketing e da comunicação ao fazer a ponte entre ciências exatas (e seu mundo de tabelas e dados) e a cultura pop (com seus rótulos amigáveis e de fácil compreensão). O desafio de unir conceitos econômicos com códigos de conduta contemporâneos utilizando exemplos e uma linguagem acessível pode ser meio comparado à boa música pop: em três minutos é possível divertir e prender a atenção com ganchos ao mesmo tempo em que se traz consistência, compreensão e um pouco de alimento para o coração. Se uma música faz isso abrindo vias sentimentais por meio de ritmo e melodia, esses artigos e livros abrem certas caixas de pandora atuais, tentando explicar como está funcionando um mundo que, me perdoem o clichê, muda com tamanha velocidade e profundidade. E isso é sempre útil.

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É importante frisar que Free (como Long Tail ou Snack Culture) não traz nada de novo. Mas oferece um olhar panorâmico a mais um fenômeno da economia que se multiplicou e se evidenciou com o advento da digitalização de quase tudo. O ponto central de Free é o processo de “gratização” do comércio. Anderson busca lá atrás, no exemplo do empresário americano King Gilette que iniciou seu pequeno império oferecendo uma parte de um produto de graça (lâminas) para depois vender outra (barbeadores). Segundo Anderson (e qualquer um de bom senso…) hoje, esse subterfúgio está se tornando regra: você ganha o celular se comprar o plano, você compra um videogame barato mas os jogos são caros, você ganha uma máquina de café expresso na sua empresa mas tem que pagar pelo sachet do pó. Anderson segue o artigo fazendo uma rápida análise do impacto desse esquema nos hábitos do consumidor e coloca as grandes empresas da web como expoentes da “freeconomy”.

O exemplo do Google é inevitável: uma empresa que oferece todos os seus serviços de graça para os usuários. Todos. Serviços valiosos, como busca de dados, email, postagem de dados, programas baseados na web, analisadores de dados, blablablá. E quem paga a conta disso tudo? Os próprios usuários. Não com dinheiro, mas com o bem mais valioso e disputado do mundo atual: atenção.

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O parágrafo que, pra mim, resume a essência do artigo ressalta que “A palavra chave é externalidade, um conceito que diz que o dinheiro não é o único bem escasso no mundo. Primeiro, temos tempo e respeito em falta, dois fatores que sempre foram reconhecidos como valiosos, mas que só há pouco tempo pudemos medir. A economia da atenção e a economia da reputação são muito nebulosas para ganhar um departamento acadêmico, mas há algo de sólido em sua essência. Graças ao Google, hoje temos um jeito simples de converter reputação (PageRank) em atenção (tráfego) e esta em dinheiro (AdWords). Qualquer coisa que você possa transformar em dinheiro é uma moeda em si e o Google se tornou o banco central da nova economia.”

Oferecer serviços e produtos de graça, portanto, nunca é de graça. Mas isso não quer dizer que você esteja pagando com dinheiro a barbada. A sua atenção, sua fidelidade e sua capacidade de falar bem de uma marca ou produto são muito mais valiosos que seus merrequentos reais na fatura do fim do mês. Porque com a sua atenção, se eu fizer tudo direitinho, eu posso manter sua fidelidade. Com a sua fidelidade, você vai não apenas gastar mais comigo como também vai sugerir que outras pessoas invistam sua atenção em mim – pois está valendo a pena. O ciclo viral se inicia.

Se as empresas sabem como fazer isso decentemente, são outros quinhentos.

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Só um exemplo pra mostrar como funciona a economia da atenção. Vamos pegar a revista da Gol Linhas Aéreas. Uma revista com um conteúdo bem razoável que você leva de graça pra casa, se quiser. Ou lê tudo no avião, sei lá. O fato é que a revista é uma espécie de comercial da empresa. Um comercial com conteúdo, com entretenimento, com informação. Mas um comercial. Se você demora 40 minutos com a revista, eles estão oferecendo algumas matérias e fotos em troca de 40 minutos da sua vida, pra você passar com a marca deles, com um conteúdo curado a partir do conteúdo de marca da Gol.

Entendeu?

Continua na segunda-feira.

Bom finde.